"O ano de 2014 foi marcado pelo agravamento
da crise da segurança pública no Brasil. A curva ascendente dos homicídios no
país; a alta letalidade nas operações policiais, em especial nas realizadas em
favelas e territórios de periferia; o uso excessivo da força no policiamento
dos protestos que antecederam a Copa do Mundo; as rebeliões com mortes
violentas em presídios superlotados, e casos de tortura mostram que a segurança
pública no país precisa de atenção especial por parte das autoridades
brasileiras." (Relatório da Anistia
Internacional, divulgado em 26.02.2015).
Os problemas da segurança
pública brasileira são reflexos de um legado político autoritário: uma
engenharia político-institucional que conecta os dilemas da violência urbana
atual ao passado da violência rural.
As bases do sistema
público de segurança (ainda) estão assentadas numa estrutura social
historicamente conivente com a violência privada, a desigualdade social,
econômica e jurídica e os “déficits de cidadania” de grande parte da população.
O medo derivado da
violência urbana somado à desconfiança nas instituições do poder público
encarregadas da implementação e execução das políticas de segurança produzem
uma evidente diminuição da coesão social, o que implica, entre outros
problemas, na diminuição do acesso dos cidadãos aos espaços públicos; na criminalização
da pobreza (à medida que determinados setores da opinião pública estigmatizam
os moradores dos aglomerados urbanos das grandes cidades como os responsáveis
pela criminalidade e violência) e na desconfiança generalizada entre as
pessoas, corroendo laços de reciprocidade e solidariedade social.
Justiça ou
Vingança?
Todas as vezes que
ocorre um crime a provocar grande comoção nacional, parte da sociedade
brasileira – capitaneada por um discurso minimalista e conservador, com
repercussão imediata na grande mídia – clama por leis draconianas como
lenitivo para diminuir a criminalidade violenta. Foi assim com a
"criação" da lei de crimes hediondos, por exemplo. O resultado desse
tipo de medida repressiva e pontual – objetivando o adensamento do estado
penal – não apresenta resultado efetivo em termos de diminuição dos
crimes.
É admissível e
compreensível que, diante de um crime bárbaro, os parentes da vítima desejem
vingança. Sob o ponto de vista privado, essa é uma prerrogativa do indivíduo;
dos que sofrem a violência desproporcional de qualquer forma e estão sob o
impacto dela. Porém, o Estado não tem essa prerrogativa. Considerando-se que o
indivíduo pode, intimamente, desejar vingança (haja vista nossa cultura
judaico-cristã, que valoriza os atos sacrificiais), o Estado – mantenedor
das conquistas do processo civilizatório, cuja base está na garantia dos
direitos humanos – não pode ser vingativo e passional em seus atos.
A mesma indignação que
move muitas pessoas a desejarem o recrudescimento penal (desde que seja sempre
direcionado para o outro) em momentos de comoção não é mobilizadora frente à
violência e carnificina generalizadas que atingem, cotidianamente, milhares de
pessoas. No Brasil, a cada ano, são assassinadas cerca de 60 mil pessoas. Se
somarmos as vítimas do trânsito (que tem se transformado numa guerra virulenta)
esse número ultrapassa a casa de 100 mil vidas ceifadas anualmente. Numa
década, são mais de um milhão de pessoas mortas por causas externas; o que
significa que milhares dessas vidas poderiam ser poupadas.
A
desarticulação estatal no enfrentamento da violência e do crime
Outra consequência do
aumento dos crimes é que as agências encarregadas pela aplicação da lei (o
sistema de justiça criminal: polícias, Ministério Público, Justiça, Sistema
prisional) não se prepararam para o recrudescimento e a sofisticação da
criminalidade, agindo quase que exclusivamente de modo reativo.
Impunidade e morosidade
são duas das características marcantes do sistema de justiça brasileiro. Condenação
de homicídios, por exemplo, tem taxa de resolutividade inferior a 15% dos
crimes praticados. Não adianta apontar o dedo somente para as polícias,
atribuir responsabilidades para as políticas sociais, delegar funções de
segurança para os municípios se o Judiciário e o Ministério Público não
melhorarem sua eficiência e efetividade.
Num ambiente de
insegurança e medo crescentes, as deficiências na política de segurança pública
corroboram o enviesamento da solução: ao invés de se buscarem saídas na esfera
pública (e política), governos e sociedade colaboram para soluções no
âmbito privado: a indústria da segurança privada cresce exponencialmente.
O legado
da Ditadura
Como se não bastasse
toda uma ordem político-institucional e cultural geradora da exclusão e do
afastamento de grandes parcelas da população dos direitos de cidadania, o
período ditatorial (1964 – 1985) acentuou o esfacelamento de uma cultura
democrática em construção ao enfatizar o controle do Estado em relação às
chamadas “classes perigosas”. Em boa medida, o conceito da “doutrina de
segurança nacional” criado durante a Ditadura Militar continuou vigorando na
estrutura de nossos sistemas estaduais e federal de segurança. Até meados da
década de 1990, o modelo e as ações de segurança pública limitavam-se à
contenção social, a partir do preceito de que “lei e ordem” públicas derivariam
no uso da força, das armas e das ações policiais pela exclusiva via da
repressão. Em síntese, segurança como “coisa de polícia”.
O autoritarismo,
característico desse período, conjugou-se com práticas clientelistas e
patrimonialistas - que remontam da formação social e política nacional – na
conformação de um sistema público de segurança claramente a serviço de
determinadas classes sociais, com o aval da legalidade dada por parte do
Estado. Tal situação perdurou mesmo depois da promulgação da Constituição
Federal de 1998.
Percebe-se que nas
lacunas deixadas pelas políticas de proteção e promoção da cidadania, coube às
corporações policiais, quase que exclusivamente, não só a intervenção, mas
também a interpretação, com discricionariedade, de sua função social e de como
tal função deveria ser exercida. A militarização da segurança pública –
com uso excessivo da força policial e a lógica do confronto com o inimigo
(muitas vezes encarnado na figura dos pobres e negros, em especial nos
territórios periféricos e favelas) tem contribuído para a manutenção do alto
índice de violência letal no país.
"Os problemas da segurança pública brasileira são reflexos de
um legado político autoritário: uma engenharia político-institucional que
conecta os dilemas da violência urbana ao passado da violência rural."
Os impasses
institucionais, principalmente aqueles relativos às alterações substantivas não
efetuadas nas estruturas organizacionais das agências responsáveis pela
execução das políticas de segurança (polícias, sistema prisional, judiciário,
etc.), emperraram a possibilidade de mudanças estruturais – que seriam
fundamentais para a superação dos velhos paradigmas que sustentam a política de
segurança pública brasileira.
O resultado da falta de
governança na segurança pública tanto no plano federal quanto nos estados pode
ser assim sintetizado: (a) instituições policiais não conseguem superar os
modelos tradicionais tanto de policiamento ostensivo, quanto de policia judiciária
– o que pode explicar, em parte, os óbices para uma efetiva integração
policial; (b) sistema prisional fundado na contenção dos detentos, com poucas
condições objetivas de reinserção social dos presos; (c) política de
enfrentamento das drogas é insuficiente, desarticulada e não responde à
complexidade do tema; (d) Defensorias Públicas com ação limitadíssima pelo
escasso número de servidores e alcance de suas ações; (e) baixa eficiência dos
mecanismos efetivos e autônomos de controle externo das ações policiais; (f)
falta de transparência dos dados de segurança pública; (g) ausência de
participação social nos mecanismos de gestão e controle da política de
segurança.
Segurança
Cidadã
Sob o ponto de vista
conceitual, só muito recentemente tal política passou a ser entendida como
direito de cidadania (superando fase anterior que tratava a segurança
exclusivamente como política de controle social pelo Estado). A principal
modificação foi-se constituindo a partir da assunção do conceito de segurança
cidadã, que privilegia o papel da sociedade civil na relação com a política de
segurança pública, velando pela observância das garantias fornecidas no âmbito
do Estado de Direito e a busca da implantação de novos princípios e valores que
fortaleçam a segurança democrática.
Dar novo conceito à
segurança significa considerar que o centro da mesma é o cidadão. Entendida
como um bem público, a segurança cidadã refere-se a uma ordem cidadã
democrática e permite a convivência segura e pacífica.
Não obstante essa
alteração na concepção e nas tentativas de implementação de novos paradigmas na
política, as mudanças nas agências executoras da segurança pública foram
pontuais. As estruturas e a cultura repressiva dessas agências do subsistema de
segurança ainda rechaçam todo tipo de reformas. Ou seja, apesar da mudança na
política, houve pouca (ou quase nenhuma) transformação nas ações de segurança
pública, na ponta. Isso aponta para um delicado paradoxo: como as mudanças
nessas agências foram incrementais, apesar das alterações no âmbito da
formulação e da implementação da política, os velhos paradigmas sobre os quais
foram erigidas as bases do sistema de segurança ainda se refletem, com
evidência, nos elevados indicadores de criminalidade, nos desarranjos do
sistema de justiça criminal, na desconfiança nas instituições desse sistema e
na sensação de medo e insegurança que campeiam nas nossas cidades.
Parabéns pelo texto, Robson. E obrigado por compartilhar.
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