De
maneira discreta, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) acaba de
lançar o volume 3 da série “Pensando o Brasil”. Com o título “Crises e
Superações”, o documento é, sem sombra de dúvida, o mais incisivo e contundente
pronunciamento do episcopado acerca da situação social, econômica e política
brasileira nas duas últimas décadas.
Apesar de não explicitar em nenhum momento
que se trata de uma análise do processo sociopolítico que vem se arrastando no
país desde as eleições de 2014, o texto possibilita uma interpretação crítica
acerca das perspectivas de redução das políticas públicas que visam o
enfrentamento e a diminuição das desigualdades sociais e fragilizam os
segmentos mais vulneráveis da população, em curso desde a assunção do governo
interino.
Fruto
de intensas discussões e debates durante a 54ª Assembleia Geral da Conferência
(realizada em Aparecida, SP, entre os dias 5 e 15 de abril deste ano), a
primeira versão do documento foi apresentada no primeiro dia do evento e
despertou intenso debate dentro do episcopado (como comentamos aqui).
Informações de bastidores apontam que alguns prelados chegaram a classificar o
documento como uma “análise produzida pelo MST (Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra) e outros anunciavam ser a contribuição mais profética da entidade
desde a década de 1980.
Debatido
durante todo o período do encontro da cúpula da Igreja Católica brasileira, a
versão final foi aprovada, surpreendentemente, por mais de 95% dos cerca de 300
bispos presentes na última plenária, evidenciando uma enorme coesão do
episcopado acerca dos problemas sociais, éticos, econômicos e políticos que
colocam em risco a democracia e as instituições nacionais nos últimos tempos.
Na
apresentação do documento, o secretário-geral da CNBB, Dom Leonardo Steiner,
afirma que “os valores humanos fundamentais, as forças ideológicas, a força do
Evangelho, as forças políticas e os movimentos sociais vão modificando a
realidade. As modificações não são sempre conforme a perspectiva do Evangelho.
Aos cristãos é entregue a tarefa de participar da transformação da realidade da
convivência humana, percebendo as suas crises e, pelo testemunho, indicar a
superação.”
Como
trata-se de um documento muito denso, destacamos, a seguir, alguns trechos:
a) Crítica ao segmento político, ao sentimento difuso de
intolerância e ao Congresso Nacional: “A classe política parece não ter ouvido os
protestos populares de 2013, ficando preocupada com seus interesses
particulares. Por parte de alguns setores, aparecem discursos marcados pela
intolerância que estigmatizam grupos sociais historicamente discriminados:
pobres, negros, nordestinos, indígenas, quilombolas. Violências e conflitos
pela terra estão ficando cada vez mais agudos com repercussões no Congresso
Nacional. Mais grave é a tentativa de promover retrocesso amplo e geral nos
direitos sociais constitucionalizados pela implementação do ajuste fiscal, que
se impõe ao ajuste estrutural.” (Página 12).
b) Crítica ao capitalismo rentista e ao consumismo: “Disso se infere que o
capitalismo implica a existência de um permanente estado de insatisfação que se
retroalimenta: quanto mais o sujeito consome, maior a sua carência. Não se
trata da falta que se sente de um bem, mas da falta em si mesma. Forma-se uma
espécie de carência essencial. Essa insatisfação absoluta, nunca sanada, cobra
não só a oferta dos bens, mas requer que os bens sejam dispostos em excesso.”
(...) “A cidadania se confunde, então, com o acesso ao consumo, como se a
soberania do consumidor prevalecesse e suplantasse todo o resto. Em tal
perspectiva, bastaria estender ao sujeito a possibilidade de escolher e
consumir bens que estariam, então, resolvidas todas e quaisquer outras
necessidades.” (...) “De um capitalismo produtivo, baseado na expansão
industrial, geração de emprego e distribuição de renda passou-se para um
capitalismo abalizado, fundamentalmente, na especulação financeira e no
rentismo. É o mundo rentista que tem estruturado as grandes estratégias do
capitalismo contemporâneo, com suas empresas, conglomerados,
internacionalizadas e oligopolizadas, sob a égide do sistema financeiro.” (Páginas 18, 19, 20 e 21).
c) Crítica aos governos que priorizam a economia em detrimento
dos interesses das pessoas e do meio ambiente: “Atualmente, nos países capitalistas o
ministro responsável pela pasta econômica dos governos geralmente é a
personalidade mais importante, mais referenciada e respeitada que o próprio
governante eleito pelo povo. E ainda, nesse modelo global de uma economia que
não cuida da Casa Comum, não há nenhum controle público nem na esfera nacional,
nem no plano global do capital.” (Página 23).
d)
Numa alusão ao processo de
impeachment, crítica às rupturas
democráticas:
“As muitas transformações vividas em tempos recentes
nos enchem de alegria e renovam nossa esperança quanto à possibilidade e à
viabilidade de se construir uma sociedade mais fraterna e igualitária. Trazem
também muita apreensão, na medida em que se constata que a democracia não é uma
instituição que se move de maneira linearmente progressiva. As sociedades podem
avançar em direção a uma maior democracia, oferecendo maiores garantias de
liberdade e de direitos. Todavia, podem também regredir a modelos oligárquicos
e autoritários, herança de outros tempos ainda não totalmente superados.”
(Página 25).
e) Crítica à atuação da mídia
no contexto da crise social e política: “A liberdade de expressão e de
pensamento é um valor fundamental na sociedade. Todavia, a imparcialidade e a
objetividade permaneçam sendo ideais não plenamente alcançados, sobretudo
quando na apresentação de um fato já se contém viés ideológico. As instituições
políticas são referidas quase sempre de forma negativa. A política é tratada
como um espaço em que prevalecem as pessoas sem ética. Por reduzi-la a algo
sujo, a mídia contribui para que a população se desinteresse de participar.
Nesse processo, ela tem deixado de exercer o papel que poderia favorecer o
cidadão no questionamento da ação política, em particular, a feita sem o amparo
dos valores éticos. Da forma como parte da mídia tem atuado, ela beneficia
certos interesses e não contribui para o incremento da democracia.” (Página 28).
f) Mais um recado ao governo atual: para enfrentar as
desigualdades sociais não há espaços para retrocessos: (...)
Não há dúvidas de que, frente às
desigualdades que ainda imperam na realidade socioeconômica brasileira, não há
espaço para retrocessos no campo da ampliação das políticas públicas voltadas
para a inclusão e geradoras de igualdade e dignidade das pessoas.” (Página 46).
g) Um alerta para as formas de dominação e exploração: “Os processos de
dominação e exploração, a imposição da vontade de uns sobre outros, as
estratégias midiáticas mistificadoras que disseminam a desinformação e propagam
de forma arbitrária uma certa visão da história são deformações do percurso da
vida social que rompem tal pacto de amizade e de fraternidade e produzem o
esgarçamento do tecido social”. (Página 50).
O documento finaliza com
um chamamento dos cristão para a defesa da democracia e à construção de uma sociedade mais
fraterna:
“Compreender
a democracia como uma instituição não implica tratá-la como algo enrijecido e
imutável. Democracia é algo que se cria e se recria permanentemente, com vistas
ao bem comum. O ideal da civilização do amor não pode existir fora da própria
história, que se faz em meio às decisões cotidianas individuais e coletivas. No
entanto, jamais se concretizará tal ideal se essas decisões deixam de ter em
vista os valores éticos do altruísmo e passam a ser ditadas por interesses
egoístas. A sociedade pressupõe a construção de um projeto de vida fundamentado
na amizade, tal como sugere a etimologia da palavra socius. Dito de outra forma, a sociedade depende das alianças que,
como amigos, fazem entre si os cidadãos. Por essa razão, não pode haver
sociedade de fato, sem a existência e a defesa incondicional da fraternidade.”
(Página 50).
O texto original do volume
3, “Crises e Superações”, da série “Pensando o Brasil”, pode ser adquirido na
íntegra nas Edições CNBB, aqui
>>>.
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