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Coronelismo,
enxada e voto: o município e o regime representativo, no Brasil, de Vitor Nunes Leal (1914 – 1985) é “obra fundamental para o
conhecimento da realidade brasileira”, nos dizeres do notável Barbosa Lima
Sobrinho que fez a apresentação do livro.
Nele,
o autor descreve com precisão essa “instituição” brasileira, calcada na
organização agrária da nossa sociedade (pelo menos até meados do século
passado) e de cujas raízes ainda florescem ramos viçosos até nossos dias. O
coronelismo é, em boa medida, a base das organizações partidárias tupiniquins e
dele nasceram e ainda crescem muitos dos vícios da politicagem nacional.
Observemos
o Congresso atual, por exemplo: quantos velhos, ou melhor, velhacos, como dizia
Ulisses Guimarães, que agem como coronéis e que têm um séquito para cumprir
suas ordens e lamber suas botas.
Diferentemente
dos coronéis do passado cujo poder político estava alicerçado nas terras, os de
hoje têm muito dinheiro. Via de regra, são empreendedores da corrupção:
conquistam o poder político com o dinheiro sujo que operam, articulando promiscuidade
na vida pública com os interesses não menos despudorados da iniciativa privada.
A
figura mais paradigmática do coronelismo repaginado da atualidade é Eduardo
Cunha. Sua renúncia à presidência da Câmara deve ser comemorada com cautela. Suas
lágrimas de crocodilo ao ler a carta de renúncia, depois de mencionar sua gestão conservadora à frente da
Câmara, estufar o peito ao assumir a paternidade do fajuto processo de impeachment e atacar o PT,
sintomaticamente em horário escolhido para entrar ao vivo durante jornal da
emissora oficial do golpe, sinaliza que a perversidade não tem limites.
Na
condição de coronel-mor, foi o grande arrecadador de fundos para a eleição de
inúmeros deputados, mantendo-os em suas mãos; como líder da bancada religiosa
(não somente evangélica) e do PMDB, tem discípulos fiéis na Câmara e no Senado; como mentor
e articulador do governo golpista tem nas mãos o presidente e seus homens e sendo
“amigo íntimo” de muitos poderosos, incluindo empresários, donos de mídias e
magistrados de togas supremas têm relações de poder que, de variados modos, poderão
salvar seu mandato e livrá-lo da prisão.
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É
verdade que, tendo em vista a imensa instabilidade do governo ilegítimo, os
amigos do coronel-chefão poderão tentar a velha estratégia de elegê-lo como
bode expiatório, entregando-o na bandeja para salvarem suas peles. Nos próximos
dias veremos se o poder do coronel Cunha foi, realmente, destruído.
Vejamos
como o coronelismo ainda persiste: Vitor Nunes Leal afirmava que uma das
características do coronel é agir tal como um senhor feudal. Ele estabelece
seus domínios. Outro atributo notável desse “sistema” é a predominância do
poder privado sobre o público. Duas qualidades perceptíveis nas principais
lideranças políticas nacionais.
Neste sentido, há muitos outros coronéis. Sarney, que parecia morto, qual fênix tupiniquim ressurgiu garboso nos últimos tempos. Renan, Agripino, Caiado, Aécio, FHC, Cunha Lima, Bolsonaro, Feliciano, para citar alguns, têm o mesmo modus operandi dos coronéis do passado. Alguns são coronéis em seus partidos; outros, coronéis em suas seitas.
Ainda segundo o autor, o coronel é mais que um líder; é uma espécie de
benfeitor dos pobres, dos trabalhadores (incapazes de governarem o próprio
voto); por isso, o “voto de cabresto”, controlado com o uso de capangas (poder
privado) e policiais (manipulação do poder público). É claro que o modelo
repaginado do coronelismo substituiu o voto do cabresto pelo voto manipulado
pelo marketing político-eleitoral e os capatazes de ontem pelo sistema de
justiça da casa grande, de hoje e de sempre.
Como verdadeiros donos dos votos e dos rumos da política, os coronéis
custeiam as despesas eleitorais de seus serviçais, exercendo funções
paternalistas, utilizando o dinheiro, os serviços e os bens públicos nas
batalhas eleitorais. Aqui também estão as
origens do patrimonialismo e do familiarismo e outras formas de nepotismo, tão
toleradas em nossa cultura política. Observemos, também, que as várias
delações premiadas dos últimos tempos abundam na descrição de casos de
nepotismo, favorecimentos privados e aumento do patrimônio familiar de
políticos que operam a corrupção na máquina pública.
É verdade que o livro de Nunes Leal avaliava o coronelismo no âmbito
municipal. Em síntese, esse sistema se constituía da seguinte forma: o coronel,
no município, controlava a política local (geralmente era o
prefeito), os votos dos seus empregados (numa sociedade genuinamente
agrária a maioria dos trabalhadores dependiam do latifúndio para a subsistência),
as obras públicas (comumente direcionadas aos seus aliados políticos), a
polícia (usada para reprimir os desafetos), etc. Esses coronéis sustentavam a
política estadual (geralmente eram governistas, ou seja, situacionistas). Os
chefes políticos estaduais dependiam do chefe situacionista local (o coronel)
para se manterem no poder. E esse ciclo vicioso se completava; ou seja, o chefe
político estadual sustentava o coronel e fechava os olhos para seus desmandos
no município com o intuito de se manter no poder. Por sua vez, o coronel
sustentava o governo estadual com os votos de cabresto da população municipal.
Mas, analisando
os esquemas de corrupção no nível nacional, observamos que os coronéis, que são
os chefes políticos de quase todos os partidos, continuam determinando as
formas de apropriação privada do patrimônio público como outrora. Ou seja, muita coisa ainda não
mudou...
Não obstante o enfraquecimento do sistema do coronelismo municipalista
que vigorou até a metade do século passado, práticas coronelistas mais amplas
ainda subsistem porque, também, não houve uma efetiva mudança na estrutura
agrária brasileira: assim, o “regime dos coronéis adapta-se aqui e ali, para
sobreviver, abandonando os anéis para conservar os dedos” (p. 256).
Além dos coronéis que são os caciques partidários, o
fato é que em pleno século XXI, a grande representação da bancada ruralista nas
casas legislativas, os
debates renitentes sobre as fronteiras do agronegócio, as constantes
libertações de trabalhadores em regime de escravidão nas fazendas do interior
do país, entre outros, denunciam ainda os resquícios desse sistema em nossa
ordem social e política.
Registre-se de passagem que a bancada ruralista,
chamada também de bancada do agronegócio ou bancada do boi, teve atuação
marcante durante o processo da Constituinte, garantindo uma série de
beneplácitos para os latifúndios brasileiros, entre os quais, obliteraram
quaisquer tentativas efetivas de uma verdadeira reforma agrária. Atualmente, a
bancada do boi associada às bancadas das armas e da bíblia, formando a
coalizão BBB, são responsáveis pelos maiores atrasos no campo legislativo, por retrocessos nas políticas públicas e também são os sustentáculos do governo interino e
golpista. Se somarmos aqui os coronéis da mídia nativa fica evidenciada a
persistência do coronelismo na política atual.
Não é
por mera coincidência o fato de o governo interino ter se inspirado em símbolos
e práticas da velha república: sua logomarca; um gabinete composto por homens
velhos, ricos e em sua maioria envolvidos com a corrupção; o desdém em relação
aos pobres, trabalhadores e segmentos vulneráveis; o servilismo no plano
internacional, etc.
Por fim, vale a pena as considerações de Nunes Leal sobre o problema da
corrupção eleitoral, assunto tão debatido nos últimos pleitos. Desde o Império
e a Primeira República já se atribuía à corrupção eleitoral, segundo o autor, a
principal responsabilidade pelos males do regime representativo (p. 240 ss).
Porém, o voto se transformou em mercadoria. E foi assim que se formou o Congresso mais conservador e retrógrado de nossa história. A Câmara baixa, locus do baixo clero e da abertura do impeachment, era presidida por Eduardo Cunha. E, ao que tudo indica, será a junção da ação dos coronéis com o voto-mercadoria que decidirão os rumos do fajuto processo de impeachment no Senado.
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