Por Leonardo Isaac Yarochewsky
Desde o momento em que o Presidente
da Câmara dos Deputados recebeu a denúncia de impeachment contra a Presidenta da
República Dilma Rousseff instaurou-se na sociedade e, notadamente, no meio
jurídico acirrado debate sobre a natureza jurídica do impeachment e sua
legalidade no caso. Ministros e ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)
foram chamados a se manifestar sobre o impeachment, sua natureza e legalidade.
De igual modo vários juristas, também, se manifestaram através de artigos,
pareceres e declarações sobre o tema.
Mesmo para aqueles que entendem que a
natureza do impeachment é predominantemente política, para se evitar qualquer
flerte com o golpismo, o julgamento deve ser guiado pelos princípios
fundamentais do direito, hipótese outra representaria afronta ao próprio Estado
democrático de direito. Seria, portanto, neste contexto, inimaginável e
igualmente absurdo o Parlamento julgar a Presidenta da República por conduta
que não esteja prevista em lei (princípio da legalidade) como crime de
responsabilidade.
O
princípio da legalidade – nullum crimen nulla poena sine lege praevia -
é pedra angular do direito penal. Além de ser um princípio constitucional
limitador do poder punitivo estatal – o juiz só poderá julgar de acordo com o
que está previsto na lei e nos limites da mesma – trata-se de o princípio
político que remonta a separação dos poderes.
Sustenta-se aqui, que o processo de
impeachment tem natureza mista: política/jurídica. Segundo a ministra do STF
Carmem Lúcia o impeachment tem natureza política e jurídica-penal. Sendo assim,
mais do que nunca deve está restrito aos princípios constitucionais, processuais
e penais. Portanto, em hipótese alguma poderá a Presidenta da República ser
“impichada” sem que seja comprovado, sem qualquer sombra de dúvida, a prática
de crime de responsabilidade de acordo com a lei.
Não é despiciendo lembrar que não há
uma definição precisa e determinada dos “crimes de responsabilidade” que leve
em conta os princípios fundamentais bem como da dogmática penal.
Neste particular, a taxatividade
penal como corolário do princípio da legalidade é afrontada. A incriminação
vaga e indeterminada de certos fatos, deixa incerta a esfera da licitude,
comprometendo a segurança jurídica do cidadão. Na realidade, a incriminação
vaga e indeterminada faz com que não haja lei definindo como delituosa certa
conduta, pois, ao final, a identificação do fato punível fica ao arbítrio do
julgador¹.
Quando a ministra Carmem Lúcia,
ministro Dias Toffoli e outros afirmam que o impeachment não é golpe porque
está previsto na Constituição da República, é preciso apreender e fazer a
leitura correta da afirmação. Não satisfaz neste processo a previsão
constitucional para afastar qualquer tentativa golpista. É imperioso que o
devido processo legal, contraditório e ampla defesa sejam norteadores da
decisão que será tomada pelo Congresso Nacional. No regime presidencialista a
insatisfação popular não pode por si só levar ao impeachment do governante
máximo do país.
Para o respeitável professor de
direito público da UnB Marcelo Neves, “a DCR 1/2015, recebida pelo Presidente
da Câmara dos Deputados, é inconsistente e frágil, baseando-se em impressões
subjetivas e alegações vagas. Os denunciantes e o receptor da denúncia estão
orientados não em argumentos jurídicos seguros e sustentáveis, mas sim em
avaliações parciais, de caráter partidário ou espírito de facção. Aproveitam-se
de circunstanciais dificuldades políticas da Presidente da República em um
momento de grave crise econômica, desconhecendo, estrategicamente, o apoio que
ela vem dando ao combate à “corrupção” e a sua luta diuturna para conseguir a
aprovação de medidas contra a crise econômica no Congresso Nacional.
Denunciantes e receptor afastam-se não apenas da ética
da responsabilidade, mas também de qualquer ética do juízo, atuando por
impulsos da parcialidade, do partidarismo e da ideologia, em prejuízo do povo
brasileiro”.
De igual modo, como já referido, não
se pode marginalizar os princípios da legalidade e da taxatividade em matéria
penal.
Neste
sentido, valioso o parecer cientifico apresentado pelos consagrados professores Juarez Tavares e Geraldo Prado, in verbis:
“As pressões pela ‘flexibilização dos mandatos presidenciais’ via ampliação das
hipóteses de impeachment, para abranger situações não enquadráveis,
taxativamente, no art. 85 da Constituição – ou ainda para alargar o conceito de
‘crime de responsabilidade’ – atentam contra o significado da proteção
constitucional ao voto direto, secreto, universal e periódico. É neste sentido
que Martinez investe contra o que denomina como “tergiversação jurídica”, que
afeta a segurança jurídica do sistema democrático ao permitir o emprego do
“juízo político” “como um mecanismo de responsabilidade política, de controle
da atuação cotidiana do presidente” e termina por afirmar tratar-se de um
recurso inconstitucional. No Brasil a questão ganha contornos mais
delicados dado o fenômeno que os cientistas sociais observam, relativamente a
‘atitudes ambivalentes perante a democracia’. “
Continuam os
eminentes juristas: “O estudo de caso de emprego
abusivo do “juízo político” na América Latina aponta para algumas condutas
comuns, em particular, mas não exclusivamente, em processos que chegaram à
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em geral o abuso de poder concernente
ao impeachment pode ser constatado pela: a) deliberada não aplicação dos
critérios dogmáticos de definição dos “crimes de responsabilidade”; b) violação
sistemática das garantias do devido processo”.
É necessário atentar que embora caiba
ao Congresso Nacional, conforme já dito, processar e julgar a Presidenta da
República deve tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado Federal se
submeterem aos princípios constitucionais, as leis e as normas pertinentes à
matéria. Forçoso ressaltar, ainda, que diante de um Estado de direito - que
originariamente apresentava como características básicas: i. submissão ao
império da lei; ii. separação harmônica dos poderes; iii. enunciado e garantia
dos direitos individuais² - a “voz das ruas” por mais sedutora que seja,
principalmente, para parlamentares, não pode em hipótese alguma suplantar o
direito e as leis.
Por
tudo, o pretendido impeachment da Presidenta da República Dilma Rousseff é
golpe. Golpe porque não há crime de responsabilidade; golpe porque a “voz das
ruas” amplificada pela mídia não está acima da lei e nem da “voz das
urnas”; golpe porque pretende transformar uma insatisfação momentânea e
política em motivos irracionais, políticos e passionais para derrubar a
Presidenta eleita com cerca de 55 milhões de votos; golpe porque há um inegável
processo de criminalização da Presidenta Dilma, do ex-presidente Lula e do
Partido dos Trabalhadores; por fim, é golpe porque não está de acordo com a
lei, com o direito e com a justiça.
_______________________
¹FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
² SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
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¹FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
² SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de
Direito Penal da PUC-Minas.
Fonte:
Revista Consultor Jurídico, 27 de março de 2016.
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