Pra início de
conversa: da educação infantil à pós-graduação a educação brasileira dá uma bela lição de
como não educar à cidadania. O problema não é só dinheiro. O grande dilema a
ser enfrentado é o modelo educacional concebido para manter o status quo
inalterado e um cidadão docilizado. A quem interessa esse modelo?
Quero
propor uma discussão acerca do papel da educação, principalmente do ensino
superior, na definição de novas políticas para a educação. Imediatamente
informo que este texto não é para buscar bodes expiatórios. Mas, adianto: a responsabilidade
pelo fracasso da educação brasileira deve ser compartilhada entre governos,
gestores, professores, instituições de ensino, pais e alunos. Todos têm parcela
de responsabilidade nessa história.
Apresentarei
aqui muitos questionamentos e praticamente nenhuma receita. Reconheço que tenho
muitas dúvidas; quase nenhuma certeza. Penso, também, que vivemos um momento
complexo, no qual toda crítica, apesar de importante, é incompleta e, neste
sentido, há que se pensar em múltiplas chaves de análise.
Permitam-me,
inicialmente, uma breve introdução. Podemos dizer que a política de educação atual
tem como marco legal a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB/1996), atualizada recentemente. Foi a partir desses marcos legais
que se iniciou o processo de ampliação, descentralização e municipalização de
políticas sociais em geral, e da educação em particular.
A nova Constituição Federal afirmou que a educação é direito
de todos e dever do Estado, portanto, cabe a ele oferecer educação pública de
qualidade. Além disso, redistribuiu as obrigações pelos entes federados, ao
afirmar que o Brasil é uma federação e que as obrigações serão distribuídas
entre Estados, Municípios e Distrito Federal, com o concurso da iniciativa
privada.
Na década de 1990, período no qual o
Brasil deveria ampliar as políticas sociais (dado o trágico legado histórico de
exclusão, que atingia a maioria dos brasileiros), fomos surpreendidos por um contexto
internacional de ampliação do chamado neoliberalismo, pretenso fim da história
e época de políticas focalizadas, restritivas e voltadas para o bom desempenho
dos governos com base em políticas de resultado. Nunca antes na história deste
país se ouviu falar tanto e de forma tão incisiva a palavra gestão. Não obstante
a imperiosa necessidade de eficiência do setor público, o foco em resultados
redundou no enquadramento das políticas públicas, avaliadas a partir de então
pelo critério da eficiência e nem sempre tendo em vista a efetividade dessas
políticas.
Porém, foi neste contexto que o governo brasileiro
praticamente universalizou as matrículas para o ensino fundamental; no entanto,
não garantiu a qualidade da educação; também não garantiu a permanência das
crianças na escola, e a entrada ao ensino médio ficou restrita uma parcela dos
ingressantes no ensino fundamental. A análise dos dados da Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad, 2012) feita pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) mostra que, apesar de ter aumentado de 27% para
51% a frequência de estudantes entre 18 e 24 anos no ensino superior, essa
expansão educacional apresenta disparidades, principalmente se levado em conta
o critério racial. De acordo com o IBGE, o percentual de negros no ensino
superior passou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011. Outro gargalo encontra-se no ensino
infantil, especialmente de 0 a 3 anos: as creches atendiam pouco mais de 20% da
demanda.
É certo que na última década a educação deu um salto,
especialmente, a educação superior, com programas tais como o Reuni, em apoio a
expansão das universidades públicas federais; o Prouni, oferecendo vagas nas
instituições de ensino superior privadas, a ampliação do Fies, financiamento
das mensalidades nas universidades privadas etc.
Porém,
somente 19% dos jovens entre 18 e 24 anos estão nos cursos superiores. A
concentração da educação superior, não obstante a ampliação da rede pública,
está nas mãos da iniciativa privada.
Com o aumento da arrecadação de impostos
e taxas nos últimos anos, no período de crescimento da economia, os
investimentos públicos em educação foram sensivelmente majorados. Com a
aprovação da lei que garante 75% dos royalties do petróleo do pré-sal para a
educação, o Ministério da Educação prevê a entrada, nos próximos 30 anos, de R$
368 bilhões no investimento em educação, podendo chegar a meio trilhão de
reais.
Apresentado
esse modesto cenário da política pública de educação brasileira, proponho,
agora, uma breve discussão sobre políticas para a educação, obviamente pautando
alguns pontos entre tantos possíveis de serem abordados.
Há, ainda, certo consenso segundo o qual a educação é a salvação
da lavoura. Ou seja, a educação teria quase uma função redentora,
principalmente em contextos de grande desigualdade social, como é o nosso caso.
Com o
aprofundamento do neoliberalismo nas últimas décadas, quando a economia determina
a política, subjugando-a; os direitos passam a ser concessões, os cidadãos são
clientes e o estado se amesquinha frente aos interesses privados e do mercado,
temos situações das mais paradoxais. Vejamos um cenário atual: em partes da
Europa, com índices invejáveis de escolarização se comparados à realidade
brasileira, observamos o desemprego campeando. Usando esse mesmo critério de
comparação, o Brasil está em situação diametralmente oposta: escolarização
deficitária, e quase situação de pleno emprego; porém muitos empregos de baixa
qualidade.
Retomemos
alguns dados: no Brasil, temos o ensino fundamental com cobertura quase integral,
mas de qualidade muito aquém do desejável; ensino médio insuficiente para
atender os jovens num momento crucial de suas vidas; ensino superior majoritariamente
nas mãos de instituições de ensino privadas, muitas delas focadas num modelo
educacional direcionado exclusivamente para a formação para o mercado, com
estímulo a práticas individualistas e permeadas por uma relação na qual o que
vale é atender bem ao aluno-cliente, oferecendo-lhe mercadoria que satisfaça
seus desejos.
O intento de uma educação superior que poderia colaborar com a
alteração do status quo, numa sociedade vergonhosamente desigual e excludente como a nossa, parece
ser algo cada vez mais distante.
É nesse
contexto, também, que devemos discutir a chamada “crise das licenciaturas”.
Quais os motivos que justificariam a baixa procura pelos cursos de formação de
professores? Será que o argumento da remuneração dos professores é suficiente
para explicar a baixa demanda? Qual o papel dos governos, das universidades e
dos docentes na reversão desse quadro? Existiram motivações de outras ordens,
como por exemplo, o significado social que vem sendo construído em torno da
figura do docente?
Estamos satisfeitos com essa situação? Qual o papel da
Universidade para alterar esse quadro? Qual a nossa responsabilidade como
educadores que, a princípio, deveríamos estar comprometidos com alteração nas
políticas para a educação?
Será
que a responsabilidade desse quadro meio dantesco é somente dos governos? O
discurso meio óbvio de sempre eleger algum bode expiatório para justificar as
mazelas na e da educação resolve?
Será que o aumento nos investimentos em educação, apesar de
necessário, é suficiente para mudar essa realidade? As mudanças só são
possíveis se elaboradas por agentes externos (como as muitas reformas
incrementais na educação, realizadas a partir de financiamento de agências
alienígenas?)
É a
partir desses questionamentos que quero concluir este post.
Embora
pouco discutidas no Brasil, ao longo das décadas de 1990 e 2000, três
abordagens tornaram-se bastante influentes na literatura internacional sobre
políticas públicas: a Teoria do Equilíbrio Pontuado, a Teoria dos Fluxos Múltiplos
e o Referencial de Coalizões de Defesa. Essas abordagens foram desenvolvidas
“com o objetivo de explicar a construção de políticas públicas com base em uma
noção de processo complexo, que envolve uma ampla variedade de atores, com as
mais variadas crenças, valores e conhecimentos especializados”.
Trago
aqui uma contribuição da Ciência política para nossa discussão sobre políticas
para a educação. O foco é o papel dos atores políticos, suas ideias e crenças e
a formação de coalizões que alteram um campo. Penso ser essa uma boa chave de
leitura para compreender mudanças numa determinada política. Ou seja, crenças,
valores e ideias são importantes dimensões do processo de formulação e
implementação de políticas.
Em outras palavras, pensando na política pública para a educação,
a manutenção do status quo ou as mudanças só seriam possíveis na medida em que
grupos de atores que atuam na política de educação se associassem com novas ideias,
baseadas em crenças consolidadas, tentando alterar o campo.
Neste
sentido, todos nós, professores, alunos, instituições de ensino superior, somos
importantes atores.
Terá
sustentação um discurso que omite ou diminui o papel desses atores numa
discussão sobre políticas para a educação? Creio que não.
A
estratégia muitas vezes utilizada para a responsabilização de outros atores,
também importantes, como o governo, os interesses empresariais que operam no
sistema de educação, a falta de apoio das famílias em relação as escolas, os
parcos recursos investidos na educação, todas essas estratégias são legítimas,
mas foram insuficientes para mudanças qualitativas na política educacional
brasileira nesse período pós-constituição de 1988.
Então,
caberiam aqui as seguintes perguntas:
- Primeiro, em relação às
instituições de ensino, principalmente, as instituições de ensino superior,como atores fundamentais de uma política
para a educação comprometida com mudanças sociais:
* Haveria uma responsabilidade
ética dessas instituições na configuração de políticas para a educação
comprometidas na alteração do vergonhoso quadro de desigualdades sociais,
responsáveis pelas variadas formas de exclusão social e subcidadania de milhões
de brasileiros?
* O ensino superior tem somente
serventia para atender a demandas de mercado ou a interesses meramente
individualistas e privados?
* Quais coalizões mantém o
atual sistema de ensino superior? Quais os principais interesses que permeiam
esses grupos?
Em
segundo lugar, algumas perguntas são dirigidas para nós, educadores:
* Exercemos nossa função como
atores fundamentais das políticas para a educação?
* Existem coalizões de
professores, com ideias e crenças capazes de propor alteração do nosso sistema
de educação?
* Como atores relevantes da
política, os professores são capazes de se articular para propor mudanças?
* Nossos interesses ainda estão
focados no corporativismo expresso somente em épocas de demissão, rearranjos de
gestão das instituições de ensino ou períodos de negociação salarial?
Por fim, uma pergunta aos alunos e alunas:
vocês se consideram atores importantes na definição de políticas para a
educação?
Conhecemos
a realidade de muitos de vocês: acordam bem cedo, pegam um ônibus lotado,
trabalham sem parar e, a noite, ainda frequentam a universidade. Falta tempo
para lazer e cultura. E falta tempo, também, para pensarem na própria realidade
maçante; falta tempo e às vezes suporte teórico para se associarem, formando
coalizões capazes de pautar a agenda da educação. Afinal, nosso modelo
educacional, inclusive universitária, não prevê tempo para a formação para a
cidadania.
Uma
política para a educação transformadora depende, em boa medida, da força dos
estudantes que, nas manifestações de junho e junho de 2013 mostraram-se
incomodados com o modelo de educação que temos.
A transformação que desejamos não se limita a espasmos de
participação política. Demanda uma articulação permanente, estruturada, forjada
no compromisso com as mudanças. Isso vale para pensarmos desde as situações da
micropolítica, no local onde trabalhamos e estudamos, por exemplo, até as
políticas mais amplas.
Vamos
simplesmente assistir, muitas vezes nos bastidores, os novos arranjos nas
políticas de educação? Qual o nosso papel como atores relevantes na
configuração de novas políticas para a educação?
Na
condição de professor (que deseja ser um educador) ando incomodado e faço essas perguntas primeiro para mim.
E, finalizo, partilhando-as com vocês.
Parabéns pelas considerações Robson Sávio, pelo estudo e pela temática abordada em texto com tantos aprofundamentos. Temos sim de colocar esse assunto em debate numa mesa bem ampla, eclética e participativa. Não sei se falaria em culpa de A, B ou C. Talvez de responsabilidades e responsabilizações de quem tem o dever e a obrigação de fazer e "fazer o dever de casa bem feito". Aí, cada um de nós, em nosso espectro de atuação, temos muito a aprender,conhecimento a partilhar e acima de tudo, disposição e coragem para assumir o que nos propusemos a fazer. Topo fazer essa discussão!
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário, Vera. Um grande e saudoso abraço.
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