quinta-feira, 19 de novembro de 2015

As raízes e os resquícios do coronelismo e sua relação com a corrupção


O livro Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo, no Brasil, de Vitor Nunes Leal (1914 – 1985) é “obra fundamental para o conhecimento da realidade brasileira” (p. XVII), nos dizeres do notável Barbosa Lima Sobrinho.
Nela o autor descreve com precisão essa “instituição” brasileira, calcada na organização agrária da nossa sociedade (pelo menos até meados do século passado) e de cujas raízes ainda florescem ramos até nossos dias. O coronelismo é, em boa medida, a base das organizações partidárias tupiniquins e dele nasceram e ainda viçam muitos dos vícios da politicagem nacional.
O coronelismo, nos municípios interioranos, se traduzia “numa hegemonia econômica, social e política que acarretava, por sua vez, o filhotismo, expresso num regime de favores aos amigos e de perseguição aos inimigos”, lembra Barbosa Lima Sobrinho na introdução da obra.
Além da estrutura agrária concentradora da riqueza nas mãos dos coronéis, o coronelismo tinha como seu lócus preferencial a política municipal, onde coronel, tal como um senhor feudal, estabelecia seus domínios. Outra característica notável desse “sistema” é a predominância do poder privado sobre o público,
é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores das terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem a referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil (p. 20).
Ainda segundo Vitor Nunes Leal, o coronel é mais que um líder; é uma espécie de benfeitor dos pobres, dos trabalhadores (incapazes de governarem o próprio voto); por isso, o “voto de cabresto”, controlado com o uso de capangas (poder privado) e policiais (manipulação do poder público).
Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento primário desse tipo de liderança é o coronel, que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto. A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras. (…) Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitam. Também se enfeixam em suas mãos, com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais (…) com o auxílio de empregados, agregados e capangas (p. 23).

Como verdadeiro dono dos votos de seus empregados, o coronel custeia as despesas eleitorais, exercendo funções paternalistas, utilizando o dinheiro, os serviços e os bens do município nas batalhas eleitorais. Aqui também estão as origens do patrimonialismo e do familiarismo e outras formas de nepotismo, tão toleradas em nossa cultura política.




Em síntese, o coronelismo se constituía da seguinte forma: o coronel, no município, controlava a política local (geralmente era o prefeito[1]), os votos dos seus empregados (numa sociedade genuinamente agrária a maioria dos trabalhadores dependiam do latifúndio para a subsistência), as obras públicas (comumente direcionadas aos seus aliados políticos), a polícia (usada para reprimir os desafetos), etc. Esses coronéis sustentavam a política estadual (geralmente eram governistas, ou seja, situacionistas). Os chefes políticos estaduais dependiam do chefe situacionista local (o coronel) para se manterem no poder[2]. E esse ciclo vicioso se completava; ou seja, o chefe político estadual sustentava o coronel e fechava os olhos para seus desmandos no município com o intuito de se manter no poder. Por sua vez, o coronel sustentava o governo estadual com os votos de cabresto da população municipal.

A essência, portanto, do compromisso “coronelista” – salvo situações especiais que não constituem regra – consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar (p. 49 – 50).

O início da decadência do sistema coronelista é identificado pelo autor a partir de algumas constatações: (1) o sacrifício da autonomia municipal; (2) o enfraquecimento do poder dos donos das terras; (3) a mudança na estrutura social brasileira (do campo para a cidade – urbanização, comércio e indústria); (4) as mudanças progressivas na legislação eleitoral (principalmente a partir do Código Eleitoral de 1932[3], que criou a Justiça Eleitoral e que fortalece, segundo o autor, o regime representativo e cujos resultados objetivos foram as derrotas de algumas situações estaduais, com o declínio da influência governista); (5) a revolução de 1930; (6) o regime federativo que

ao tornar inteiramente eletivo o governo dos Estados, permitiu a montagem, nas antigas províncias, de sólidas máquinas eleitorais; essas máquinas eleitorais estáveis, que determina a instituição da “política dos governadores”, repousam justamente no compromisso “coronelista” (p. 253).

Não obstante sua decadência e enfraquecimento, práticas coronelistas ainda existem, pois efetivamente não houve uma profunda mudança na estrutura agrária brasileira: assim, o “regime dos coronéis adapta-se aqui e ali, para sobreviver, abandonando os anéis para conservar os dedos” (p. 256).
Parece evidente que a decomposição do “coronelismo” só será completa quando se tiver operado uma alteração fundamental em nossa estrutura agrária. A ininterrupta desagregação dessa estrutura – ocasionada por diversos fatores, entre os quais o esgotamento dos solos, as variações do mercado internacional, o crescimento das cidades, a expansão da indústria, as garantias legais dos trabalhadores urbanos, a mobilidade da mão-de-obra, o desenvolvimento dos transportes e das comunicações – é um processo lento e descompassado, por vezes contraditório, que não oferece solução satisfatória para o impasse. (p. 257).

O fato é que em pleno século XXI, a grande representação da bancada ruralista nas casas legislativas federais[4]os debates renitentes sobre as fronteiras do agronegócio, as constantes libertações de trabalhadores em regime de escravidão nas fazendas do interior do país por órgãos do Ministério do Trabalho, entre outros, denunciam ainda os resquícios desse sistema em nossa ordem social e política.

Nesse sentido, conclui magistralmente o autor clamando pelo espírito público tão ausente em nossa cultura política. Suas palavras, quando clamam pela moralidade pública parecem ressoar atuais: Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplauso de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres. (p. 258)

Por fim, registrando ainda sobre a contemporaneidade da obra de Leal, vale a pena suas considerações sobre o problema da corrupção eleitoral, assunto tão debatido nos últimos pleitos. Desde o Império e a Primeira República já se atribuía à corrupção eleitoral, segundo o autor, a principal responsabilidade pelos males do regime representativo (p. 240 ss).
Porém, vale a observação de Singer (1965, p. 80): a prática da compra e venda do voto, quando confrontada com uma visão da democracia como forma de governo pautada em princípios universalistas é considerada “corrupção eleitoral”. No entanto, no sistema capitalista, “tudo o que tem equivalência econômica tende a transformar-se em mercadoria (…). Assim, os cargos eletivos são cada vez mais suscetíveis de proporcionar rendimento econômico, fazendo com que, de modo crescente, o voto se torne mercadoria. O processo corruptor é consequência inevitável do próprio capitalismo.



Bibliografia:
LEAL, Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo, no Brasil. 2ª edição, São Paulo, Alfa-Ômega, 1975.
SINGER, Paul. A política das classes dominantes. In: IANNI, Octávio (org.). Política e revolução social no Brasil. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965.

NOTAS:
[1] Sobre a função do prefeito, o autor dedica boa parte da obra demonstrando que mesmo com as modificações introduzidas pelas alterações eleitorais, algumas na tentativa de diminuir o poder dos coronéis, estes sempre subsistiam: “convocai o povo para as urnas, como sucedeu em 1945, e o ‘coronelismo’ ressurgirá das próprias cinzas, porque a seiva que o alimenta é a estrutura agrária do país” (p. 134).
[2] “Despejando seus votos nos candidatos governistas nas eleições estaduais e federais, os dirigentes políticos do interior fazem-se credores de especial recompensa, que consiste em ficarem com as mãos livres para consolidarem sua dominação no município” (p. 253).
[3] “Tendo erigido a moralização do nosso sistema representativo em um dos seus máximos ideais, a revolução vitoriosa de 3 de outubro procurou cumprir a promessa com o código eleitoral, aprovado pelo decreto número 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que instituiu o voto feminino, baixou a 18 anos o limite de idade para ser eleitor e deu a segurança efetiva ao sigilo do sufrágio. Sua principal inovação consistiu em confiar o alistamento, a apuração dos votos e o reconhecimento e proclamação dos eleitos à justiça eleitoral”. (pp. 230 – 231).

[4] Registre-se de passagem que a chamada bancada ruralista teve atuação marcante durante o processo de redação da Constituição Federal de 1988, garantindo uma série de beneplácitos para os latifúndios brasileiros, entre os quais, obliteram quaisquer tentativas efetivas de uma verdadeira reforma agrária.

2 comentários:

  1. Olá! Boa madrugada a todos... O ¨Coronelismo¨, ao lado da Segregação, do Preconceito, do Domínio/Reserva de Mercado [Cativo], ..., ..., ..., ..., ..., etc... (entre outras inumeráveis barbaridades traiçoeiras, no âmago da ¨???elite econômica???¨), nada mais são que uma Pútrida Disfunção da : - ¨Hereditariedade Meritocrática Auto Concedidas (e auto-reconhecidas)¨, que ABSOLUTAMENTE NÃO ADMITE, nem sequer a menor possibilidade de qualquer pessoa de ¨fora de sua classe econômico/político/social¨ venha, independentemente de Provas Incontestáveis/Irrefutáveis, Suplanta-los, quer seja: - Intelectualmente, Financeiramente, Socialmente, Politicamente, Geneticamente, Espiritualmente, Profissionalmente, enfim, Humanamente...
    Ao Coronelismo, pertencem aquela Espécie Pitoresca de Boçais Energúmenos, que julgam que apenas seus #*}$@>¨&*$ #=*+, ^~#@!!<{**%¨&*% Filhos, Descendentes ou Parentes, é quem possuem o Divino Direito de alcançarem o Explendor do Sucesso, como a Presidência da República, por exemplo... Jamais um simplório trabalhador, filho de analfabetos, deveria galgar o lugar ¨destinado apenas á algum coronelzinho coxinha¨...
    O pior é que, sem perceberem, um número respeitável de ¨Eternamente Excluídos¨, que pensam/sonham (DEBALDE) em um dia virem a tornarem-se parte da Elite/Coronelista, (OS COXINHAS), através desta mesquinha, egoística ambição pessoal, acabam por PERPETUALIZAR este Status Quo malévolo vigente...
    E quando conversamos com algum desses Contraditórios Coxinhas, sobre o que eles pensam, por exemplo, sobre o Sistema de Castas existente na Índia, os poucos que souberem do que se trata, seguramente atacarão o Regime da Índia como ¨subdesenvolvido, desumano, retrógrado, terceiro mundista, que se colocam diametralmente antagônicos a divisão social em camadas rígidas/hereditárias... ¨Eles¨se quer percebem suas Retumbantes Incoerências... ...Ehhh!!! Fazer o Que!!!...

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  2. Não conhecia este blog. Grata surpresa. Já está nos 'favoritos' com status de 'leitura obrigatória'.

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