O livro Coronelismo, enxada e voto: o
município e o regime representativo, no Brasil, de Vitor Nunes
Leal (1914 – 1985) é “obra fundamental para o conhecimento da realidade
brasileira” (p. XVII), nos dizeres do notável Barbosa Lima Sobrinho.
Nela o autor descreve
com precisão essa “instituição” brasileira, calcada na organização agrária da
nossa sociedade (pelo menos até meados do século passado) e de cujas raízes
ainda florescem ramos até nossos dias. O coronelismo é, em boa medida, a base
das organizações partidárias tupiniquins e dele nasceram e ainda viçam muitos
dos vícios da politicagem nacional.
O
coronelismo, nos municípios interioranos, se traduzia “numa hegemonia
econômica, social e política que acarretava, por sua vez, o filhotismo,
expresso num regime de favores aos amigos e de perseguição aos inimigos”,
lembra Barbosa Lima Sobrinho na introdução da obra.
Além
da estrutura agrária concentradora da riqueza nas mãos dos coronéis, o
coronelismo tinha como seu lócus preferencial a política municipal, onde
coronel, tal como um senhor feudal, estabelecia seus domínios. Outra
característica notável desse “sistema” é a predominância do poder privado sobre
o público,
é
sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público,
progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes
locais, notadamente dos senhores das terras. Não é possível, pois, compreender
o fenômeno sem a referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de
sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior
do Brasil (p. 20).
Ainda
segundo Vitor Nunes Leal, o coronel é mais que um líder; é uma espécie de
benfeitor dos pobres, dos trabalhadores (incapazes de governarem o próprio
voto); por isso, o “voto de cabresto”, controlado com o uso de capangas (poder
privado) e policiais (manipulação do poder público).
Qualquer que seja, entretanto, o chefe
municipal, o elemento primário desse tipo de liderança é o coronel, que comanda
discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto. A força
eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento de sua
privilegiada situação econômica e social de dono de terras. (…) Exerce, por
exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e
desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos, que os
interessados respeitam. Também se enfeixam em suas mãos, com ou sem caráter
oficial, extensas funções policiais (…) com o auxílio de empregados, agregados
e capangas (p. 23).
Como verdadeiro dono dos votos de seus empregados,
o coronel custeia as despesas eleitorais, exercendo funções paternalistas,
utilizando o dinheiro, os serviços e os bens do município nas batalhas
eleitorais. Aqui também estão as origens do
patrimonialismo e do familiarismo e outras formas de nepotismo, tão toleradas
em nossa cultura política.
Em síntese, o coronelismo se constituía da seguinte
forma: o coronel, no município, controlava a política local (geralmente era o
prefeito[1]), os
votos dos seus empregados (numa sociedade genuinamente agrária a maioria dos
trabalhadores dependiam do latifúndio para a subsistência), as obras públicas
(comumente direcionadas aos seus aliados políticos), a polícia (usada para
reprimir os desafetos), etc. Esses coronéis sustentavam a política estadual
(geralmente eram governistas, ou seja, situacionistas). Os chefes políticos
estaduais dependiam do chefe situacionista local (o coronel) para se manterem
no poder[2]. E
esse ciclo vicioso se completava; ou seja, o chefe político estadual sustentava
o coronel e fechava os olhos para seus desmandos no município com o intuito de
se manter no poder. Por sua vez, o coronel sustentava o governo estadual com os
votos de cabresto da população municipal.
A essência, portanto, do compromisso
“coronelista” – salvo situações especiais que não constituem regra – consiste
no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do
oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual,
carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local
majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação
de funcionários estaduais do lugar (p. 49 – 50).
O início da decadência do sistema coronelista é
identificado pelo autor a partir de algumas constatações: (1) o sacrifício da
autonomia municipal; (2) o enfraquecimento do poder dos donos das terras; (3) a
mudança na estrutura social brasileira (do campo para a cidade – urbanização,
comércio e indústria); (4) as mudanças progressivas na legislação eleitoral
(principalmente a partir do Código Eleitoral de 1932[3], que criou a Justiça Eleitoral e que
fortalece, segundo o autor, o regime representativo e cujos resultados
objetivos foram as derrotas de algumas situações estaduais, com o declínio da
influência governista); (5) a revolução de 1930; (6) o regime federativo que
ao tornar inteiramente eletivo o
governo dos Estados, permitiu a montagem, nas antigas províncias, de sólidas
máquinas eleitorais; essas máquinas eleitorais estáveis, que determina a
instituição da “política dos governadores”, repousam justamente no compromisso
“coronelista” (p. 253).
Não
obstante sua decadência e enfraquecimento, práticas coronelistas ainda existem,
pois efetivamente não houve uma profunda mudança na estrutura agrária
brasileira: assim, o “regime dos coronéis adapta-se aqui e ali, para sobreviver,
abandonando os anéis para conservar os dedos” (p. 256).
Parece evidente que a decomposição do
“coronelismo” só será completa quando se tiver operado uma alteração
fundamental em nossa estrutura agrária. A ininterrupta desagregação dessa
estrutura – ocasionada por diversos fatores, entre os quais o esgotamento dos
solos, as variações do mercado internacional, o crescimento das cidades, a
expansão da indústria, as garantias legais dos trabalhadores urbanos, a
mobilidade da mão-de-obra, o desenvolvimento dos transportes e das comunicações
– é um processo lento e descompassado, por vezes contraditório, que não oferece
solução satisfatória para o impasse. (p. 257).
O fato é que em pleno século XXI, a grande
representação da bancada ruralista nas casas legislativas federais[4], os debates renitentes sobre as
fronteiras do agronegócio, as constantes libertações de trabalhadores em regime
de escravidão nas fazendas do interior do país por órgãos do Ministério do
Trabalho, entre outros, denunciam ainda os resquícios desse sistema em nossa
ordem social e política.
Nesse sentido, conclui magistralmente o
autor clamando pelo espírito público tão ausente em nossa cultura política.
Suas palavras, quando clamam pela moralidade pública parecem ressoar atuais: Não
podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política
do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito
público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as
medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e
merecem o aplauso de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil.
Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da
população rural, e, em consequência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão
sério obstáculo às intenções mais nobres. (p. 258)
Por
fim, registrando ainda sobre a contemporaneidade da obra de Leal, vale a pena
suas considerações sobre o problema da corrupção eleitoral, assunto tão
debatido nos últimos pleitos. Desde o Império e a Primeira República já se
atribuía à corrupção eleitoral, segundo o autor, a principal responsabilidade
pelos males do regime representativo (p. 240 ss).
Porém, vale a observação de Singer (1965, p. 80): a
prática da compra e venda do voto, quando confrontada com uma visão da
democracia como forma de governo pautada em princípios universalistas é
considerada “corrupção eleitoral”. No entanto, no sistema capitalista, “tudo o
que tem equivalência econômica tende a transformar-se em mercadoria (…). Assim, os cargos eletivos são cada vez mais suscetíveis de
proporcionar rendimento econômico, fazendo com que, de modo crescente, o voto
se torne mercadoria. O processo corruptor é consequência inevitável do próprio
capitalismo.”
Bibliografia:
LEAL,
Vitor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o
regime representativo, no Brasil. 2ª edição, São Paulo,
Alfa-Ômega, 1975.
SINGER,
Paul. A política das classes dominantes. In: IANNI, Octávio (org.). Política e revolução social no Brasil. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1965.
NOTAS:
[1] Sobre a função do
prefeito, o autor dedica boa parte da obra demonstrando que mesmo com as
modificações introduzidas pelas alterações eleitorais, algumas na tentativa de
diminuir o poder dos coronéis, estes sempre subsistiam: “convocai o povo para
as urnas, como sucedeu em 1945, e o ‘coronelismo’ ressurgirá das próprias
cinzas, porque a seiva que o alimenta é a estrutura agrária do país” (p. 134).
[2] “Despejando seus
votos nos candidatos governistas nas eleições estaduais e federais, os
dirigentes políticos do interior fazem-se credores de especial recompensa, que
consiste em ficarem com as mãos livres para consolidarem sua dominação no
município” (p. 253).
[3] “Tendo erigido a
moralização do nosso sistema representativo em um dos seus máximos ideais, a
revolução vitoriosa de 3 de outubro procurou cumprir a promessa com o código
eleitoral, aprovado pelo decreto número 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que
instituiu o voto feminino, baixou a 18 anos o limite de idade para ser eleitor
e deu a segurança efetiva ao sigilo do sufrágio. Sua principal inovação
consistiu em confiar o alistamento, a apuração dos votos e o reconhecimento e
proclamação dos eleitos à justiça eleitoral”. (pp. 230 – 231).
[4] Registre-se de
passagem que a chamada bancada ruralista teve atuação marcante durante o
processo de redação da Constituição Federal de 1988, garantindo uma série de
beneplácitos para os latifúndios brasileiros, entre os quais, obliteram
quaisquer tentativas efetivas de uma verdadeira reforma agrária.
Olá! Boa madrugada a todos... O ¨Coronelismo¨, ao lado da Segregação, do Preconceito, do Domínio/Reserva de Mercado [Cativo], ..., ..., ..., ..., ..., etc... (entre outras inumeráveis barbaridades traiçoeiras, no âmago da ¨???elite econômica???¨), nada mais são que uma Pútrida Disfunção da : - ¨Hereditariedade Meritocrática Auto Concedidas (e auto-reconhecidas)¨, que ABSOLUTAMENTE NÃO ADMITE, nem sequer a menor possibilidade de qualquer pessoa de ¨fora de sua classe econômico/político/social¨ venha, independentemente de Provas Incontestáveis/Irrefutáveis, Suplanta-los, quer seja: - Intelectualmente, Financeiramente, Socialmente, Politicamente, Geneticamente, Espiritualmente, Profissionalmente, enfim, Humanamente...
ResponderExcluirAo Coronelismo, pertencem aquela Espécie Pitoresca de Boçais Energúmenos, que julgam que apenas seus #*}$@>¨&*$ #=*+, ^~#@!!<{**%¨&*% Filhos, Descendentes ou Parentes, é quem possuem o Divino Direito de alcançarem o Explendor do Sucesso, como a Presidência da República, por exemplo... Jamais um simplório trabalhador, filho de analfabetos, deveria galgar o lugar ¨destinado apenas á algum coronelzinho coxinha¨...
O pior é que, sem perceberem, um número respeitável de ¨Eternamente Excluídos¨, que pensam/sonham (DEBALDE) em um dia virem a tornarem-se parte da Elite/Coronelista, (OS COXINHAS), através desta mesquinha, egoística ambição pessoal, acabam por PERPETUALIZAR este Status Quo malévolo vigente...
E quando conversamos com algum desses Contraditórios Coxinhas, sobre o que eles pensam, por exemplo, sobre o Sistema de Castas existente na Índia, os poucos que souberem do que se trata, seguramente atacarão o Regime da Índia como ¨subdesenvolvido, desumano, retrógrado, terceiro mundista, que se colocam diametralmente antagônicos a divisão social em camadas rígidas/hereditárias... ¨Eles¨se quer percebem suas Retumbantes Incoerências... ...Ehhh!!! Fazer o Que!!!...
Não conhecia este blog. Grata surpresa. Já está nos 'favoritos' com status de 'leitura obrigatória'.
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