quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Polícia e democracia (parte I)


Pretendo, neste texto, desenvolver o argumento segundo o qual discutir a atividade policial numa perspectiva de garantia dos direitos de cidadania demanda compreender e problematizar o sistema de segurança público brasileiro; e mais que isso, o nosso sistema de justiça criminal.


No Brasil, a segurança pública, historicamente, foi relegada a um segundo plano, limitando-se a ações de contenção social através de forte repressão policial, principalmente após o advento da Ditadura Militar. Não obstante a redemocratização, num esquema de “dependência da trajetória” e mesmo com o advento da Constituição Federal de 1988, muitos resquícios desse sistema altamente insulado, centralizador e autoritário persistiram nos mecanismos e nas agências de segurança pública brasileiros.
Por que isso ocorreu? Talvez pela construção histórica, política e cultural na sociedade brasileira acerca do que vem a ser lei e ordem. Uma tendência de minimizar os problemas da segurança pública, reduzindo-os a uma questão estritamente policial, voltada para o controle das chamadas “classes perigosas”, possibilitando a emergência de propostas, provenientes de distintos grupos, classes e categorias sociais, favoráveis a um rigoroso, rígido e mesmo autoritário controle repressivo do que chamamos de ordem pública. Esta linha de pensamento e ação parte do pressuposto segundo o qual cada vez mais um maior número das normas, regras e leis é violado; portanto, o problema da lei e da ordem se resumiria, em última instância, à ausência crescente de punições efetivas, o que redundaria, por sua vez, numa demanda por ação repressiva por parte do Estado: o chamado Estado penal.
Comecemos discutindo o que é segurança pública? Como afirma Luiz Eduardo Soares, a segurança pública é a estabilização de expectativas positivas quanto à ordem e à vigência de uma sociabilidade cooperativa. Portanto, a segurança pública “demanda o equilíbrio de expectativas em duas vertentes: na esfera dos fenômenos, ou seja, na redução da quantidade de práticas violentas, especialmente aquelas que se classificam como criminosas e também na esfera dos sentimentos e percepções, relacionadas não somente àquilo que é vivenciado pelas vítimas, mas às experiências vividas por parentes, amigos e aquelas divulgadas nos meios de comunicação social” e, neste caso, “impõe-se reduzir o medo, a sensação de insegurança e a instabilidade de expectativas”.
Neste sentido, a efetividade da política de segurança demanda a participação dos cidadãos, reivindicando o direito à segurança como bem público. Paradoxalmente, num ambiente muito violento, os cidadãos acabam tomando atitudes contrárias à participação social nessa política, ao entenderem que a segurança pública limita-se à ação repressiva do Estado. E ainda, o medo, uma das expressões da insegurança, estimula, muitas vezes, atitudes violentas dos indivíduos. Com medo, as pessoas se armam, constroem fortalezas, blindam os carros, isolam-se em condomínios; ou seja, reduzem ao âmbito privado um problema fundamentalmente público. Sem uma participação cívica num esforço coletivo para a construção da paz, a tendência é o mergulho no individualismo e na destruição da cultura cívica.
Porém, essa transferência do controle da violência para a sociedade (e de forma às vezes mais enviesada ainda, para a esfera privada) não se dá numa perspectiva comunitária, mas numa perspectiva econômica. Retomando Luiz Eduardo Soares, os argumentos que justificam tais iniciativas estão ancorados na eficiência da gestão, nem sempre na efetividade do sistema de segurança pública.
Registre-se, ainda, que a âncora das políticas de segurança pública está alicerçada na lógica da contenção dos criminosos que é, ao fim e ao cabo, uma das consequências da racionalidade pós-moderna que tem na ordem e na certeza da razão as chaves do poder do homem que se acha capaz de dominar tudo, caminhando rumo a um constante progresso.
A racionalidade moderna fundada no iluminismo tem sido cada vez mais questionada e colocada à prova, pois não dá conta da complexidade da sociedade contemporânea. Não obstante a esses questionamentos, o Estado, para reafirmar a sua legitimidade, utiliza cada vez mais de medidas eficazes de controle social, como, por exemplo, a expansão do sistema punitivo penal. Os discursos e políticas expansionistas encontram eco nos espectros políticos e grupos sociais, que agora enxergam na punição um mecanismo de defesa de seus interesses, em virtude da mudança na estrutura social e nas sensibilidades culturais contemporâneas.
Porém, observamos uma profunda crise de legitimidade do Estado. Fragilizado frente à expansão do mercado privado da segurança e pressionado pela sociedade que anseia por respostas rápidas frente ao aumento dos crimes, muitas vezes as políticas, no campo da segurança pública, continuam se limitam às ações de “enxugamento de gelo”, ou seja, de repressão criminal.
Mas o fato incontestável é que o papel do Estado foi (e em certa medida continua sendo) fundamental na construção da chamada ordem pública, que deveria ser entendida como bem coletivo, assim como foi (e é) fundamental nas políticas de saúde, educação, assistência social e outras.
Sendo assim, defendemos que o conceito de segurança pública é polissêmico e depende, em boa medida, de como se entende o papel do Estado na garantia de direitos e na provisão de uma ordem pública cidadã e democrática.
Portanto, uma primeira conclusão: não adianta tratar do papel da polícia isolado desse contexto maior. Até porque, soma-se a tudo isso o fato das várias agências policiais serem instituições muito insuladas, com conhecimento técnico assimétrico em relação aos outros agentes públicos e, em certa medida, detentoras de um saber e um poder discricionário de decisão e implementação de estratégias, muitas vezes para além do âmbito da política de segurança. Situação agravada pelo fato da quase inoperância dos mecanismos de controle externo dessas instituições e a falta de transparência em relação ao seu modus operandi. Sem adentrarmos na discussão sobre os papéis institucionais da polícia na política de segurança pública, urge, pelo menos, apontar para o fato de um esgotamento no modelo atual de fazer polícia. O que observamos, francamente, é que o progresso democrático da sociedade brasileira nas últimas décadas, no que concerne à provisão de diversos bens coletivos como saúde, educação, trabalho e assistência social, não encontrou o mesmo desenvolvimento no caso da segurança pública. Convivemos com situações paradoxais: por exemplo, a ampliação dos direitos de cidadania e a considerável deterioração da capacidade do poder público para controlar a criminalidade e a violência – ameaça constante aos cidadãos.

         Continuaremos esta discussão no post da próxima semana. Aguardem!

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