Pretendo,
neste texto, desenvolver o argumento segundo o qual discutir a atividade
policial numa perspectiva de garantia dos direitos de cidadania demanda
compreender e problematizar o sistema de segurança público brasileiro; e mais
que isso, o nosso sistema de justiça criminal.
No Brasil, a segurança pública,
historicamente, foi relegada a um segundo plano, limitando-se a ações de
contenção social através de forte repressão policial, principalmente após o
advento da Ditadura Militar. Não obstante a redemocratização, num esquema de
“dependência da trajetória” e mesmo com o advento da Constituição Federal de
1988, muitos resquícios desse sistema altamente insulado, centralizador e
autoritário persistiram nos mecanismos e nas agências de segurança pública
brasileiros.
Por que isso ocorreu? Talvez pela
construção histórica, política e cultural na sociedade brasileira acerca do que
vem a ser lei e ordem. Uma tendência de minimizar os problemas da segurança
pública, reduzindo-os a uma questão estritamente policial, voltada para o controle
das chamadas “classes perigosas”, possibilitando a emergência de propostas,
provenientes de distintos grupos, classes e categorias sociais, favoráveis a um
rigoroso, rígido e mesmo autoritário controle repressivo do que chamamos de
ordem pública. Esta linha de pensamento e ação parte do pressuposto segundo o
qual cada vez mais um maior número das normas, regras e leis é violado;
portanto, o problema da lei e da ordem se resumiria, em última instância, à
ausência crescente de punições efetivas, o que redundaria, por sua vez, numa
demanda por ação repressiva por parte do Estado: o chamado Estado penal.
Comecemos
discutindo o que é segurança pública? Como afirma Luiz Eduardo Soares, a
segurança pública é a estabilização de expectativas positivas quanto à ordem e
à vigência de uma sociabilidade
cooperativa. Portanto, a segurança pública “demanda o equilíbrio de
expectativas em duas vertentes: na esfera dos fenômenos, ou seja, na redução da
quantidade de práticas violentas, especialmente aquelas que se classificam como
criminosas e também na esfera dos sentimentos e percepções, relacionadas não
somente àquilo que é vivenciado pelas vítimas, mas às experiências vividas por
parentes, amigos e aquelas divulgadas nos meios de comunicação social” e, neste
caso, “impõe-se reduzir o medo, a sensação de insegurança e a instabilidade de
expectativas”.
Neste
sentido, a efetividade da política de segurança demanda a participação dos
cidadãos, reivindicando o direito à
segurança como bem público. Paradoxalmente, num ambiente muito violento, os
cidadãos acabam tomando atitudes contrárias à participação social nessa
política, ao entenderem que a segurança pública limita-se à ação repressiva do
Estado. E ainda, o medo, uma das expressões da insegurança, estimula, muitas
vezes, atitudes violentas dos indivíduos. Com medo, as pessoas se armam,
constroem fortalezas, blindam os carros, isolam-se em condomínios; ou seja, reduzem
ao âmbito privado um problema fundamentalmente público. Sem uma participação
cívica num esforço coletivo para a construção da paz, a tendência é o mergulho
no individualismo e na destruição da cultura cívica.
Porém, essa
transferência do controle da violência para a sociedade (e de forma às vezes
mais enviesada ainda, para a esfera privada) não se dá numa perspectiva
comunitária, mas numa perspectiva econômica. Retomando Luiz Eduardo Soares, os
argumentos que justificam tais iniciativas estão ancorados na eficiência da
gestão, nem sempre na efetividade do sistema de segurança pública.
Registre-se,
ainda, que a âncora das políticas de segurança pública está alicerçada na
lógica da contenção dos criminosos que é, ao fim e ao cabo, uma das consequências
da racionalidade pós-moderna que tem na ordem e na certeza da razão as chaves
do poder do homem que se acha capaz de dominar tudo, caminhando rumo a um
constante progresso.
A racionalidade moderna fundada
no iluminismo tem sido cada vez mais questionada e colocada à prova, pois não
dá conta da complexidade da sociedade contemporânea. Não obstante a esses
questionamentos, o Estado, para reafirmar a sua legitimidade, utiliza cada vez
mais de medidas eficazes de controle social, como, por exemplo, a expansão do
sistema punitivo penal. Os discursos e políticas expansionistas encontram eco
nos espectros políticos e grupos sociais, que agora enxergam na punição um
mecanismo de defesa de seus interesses, em virtude da mudança na estrutura
social e nas sensibilidades culturais contemporâneas.
Porém, observamos uma profunda
crise de legitimidade do Estado. Fragilizado frente à expansão do mercado
privado da segurança e pressionado pela sociedade que anseia por respostas
rápidas frente ao aumento dos crimes, muitas vezes as políticas, no campo da
segurança pública, continuam se limitam às ações de “enxugamento de gelo”, ou
seja, de repressão criminal.
Mas o fato incontestável é que o
papel do Estado foi (e em certa medida continua sendo) fundamental na
construção da chamada ordem pública, que deveria ser entendida como bem
coletivo, assim como foi (e é) fundamental nas políticas de saúde, educação,
assistência social e outras.
Sendo assim, defendemos que o conceito
de segurança pública é polissêmico e depende, em boa medida, de como se entende
o papel do Estado na garantia de direitos e na provisão de uma ordem pública
cidadã e democrática.
Portanto,
uma primeira conclusão: não adianta tratar do papel da polícia isolado desse
contexto maior. Até porque, soma-se a tudo isso o fato das várias agências
policiais serem instituições muito insuladas, com conhecimento técnico assimétrico
em relação aos outros agentes públicos e, em certa medida, detentoras de um
saber e um poder discricionário de decisão e implementação de estratégias,
muitas vezes para além do âmbito da política de segurança. Situação agravada
pelo fato da quase inoperância dos mecanismos de controle externo dessas
instituições e a falta de transparência em relação ao seu modus operandi. Sem adentrarmos na discussão sobre os papéis
institucionais da polícia na política de segurança pública, urge, pelo menos,
apontar para o fato de um esgotamento no modelo atual de fazer polícia. O que
observamos, francamente, é que o progresso democrático da
sociedade brasileira nas últimas décadas, no que concerne à provisão de
diversos bens coletivos como saúde, educação, trabalho e assistência social,
não encontrou o mesmo desenvolvimento no caso da segurança pública. Convivemos com
situações paradoxais: por exemplo, a ampliação dos direitos de cidadania e a considerável
deterioração da capacidade do poder público para controlar a criminalidade e a
violência – ameaça constante aos cidadãos.
Continuaremos
esta discussão no post da próxima semana. Aguardem!
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