Volta à tona a
discussão sobre a redução da maioridade penal. Todas as vezes que ocorre um
crime a provocar grande comoção nacional, parte da sociedade brasileira –
capitaneada por um discurso minimalista e conservador, com repercussão imediata
na grande mídia – clama por leis draconianas como lenitivo para diminuir
a criminalidade violenta. Foi assim com a "criação" da lei de crimes
hediondos, por exemplo. O resultado desse tipo de medida repressiva e pontual
– objetivando o adensamento do estado penal – não apresenta
resultado efetivo em termos de diminuição dos crimes.
De tempos em tempos, alguns temas voltam ao noticiário e às
redes sociais. O da redução da maioridade penal é um deles. A dor dos que
perderam algum parente vítima de violência praticada por um menor é legítima.
Porém, há outros fatores a serem considerados antes de decidir que jovens
de 16 a 18 anos também podem ir para as penitenciárias.
É admissível e
compreensível que, diante de um crime bárbaro, os parentes da vítima desejem
vingança. Sob o ponto de vista privado, essa é uma prerrogativa do indivíduo;
dos que sofrem a violência desproporcional de qualquer forma e estão sob o impacto
dela. Porém, o Estado não tem essa prerrogativa. Considerando-se que o
indivíduo pode, intimamente, desejar vingança (haja vista nossa cultura
judaico-cristã, que valoriza os atos sacrificiais), o Estado – mantenedor
das conquistas do processo civilizatório, cuja base está na garantia dos
direitos humanos – não pode ser vingativo e passional em seus atos.
A mesma
indignação que move muitas pessoas a desejarem o recrudescimento penal (desde
que seja sempre direcionado para o outro) em momentos de comoção não é
mobilizadora frente à violência e carnificina generalizadas que atingem,
cotidianamente, milhares de pessoas. Segundo o Ministério da Saúde, do total de
1.103.088 mortes notificadas em 2009, 138.697 (12,5%) foram decorrentes de
causas externas (que poderiam ser evitáveis), representando a terceira causa
mais frequente de morte no Brasil.
A mesma indignação que move
muitas pessoas a desejarem o recrudescimento penal (desde que seja sempre
direcionado para o outro) em momentos de comoção não é mobilizadora frente à
violência e carnificina generalizadas que atingem, cotidianamente, milhares de
pessoas.
A resposta
simplista, da sociedade e do Estado, para enfrentar a criminalidade violenta é
o encarceramento. Nos últimos 20 anos, nosso sistema prisional teve um
crescimento de 450%. Hoje, são mais de 550 mil presos (cerca de 60% cometeram
crimes contra o patrimônio; 30%, crimes relacionados a drogas e menos de 10%
crimes contra a vida). Superlotado, o sistema prisional tem um déficit de cerca
de 250 mil vagas. Em condições degradantes e subumanas, quase 80% dos egressos
prisionais voltam a praticar crimes. É neste sistema que desejamos trancafiar
adolescentes autores de atos infracionais?
Paradoxalmente,
nesse período de brutal encarceramento, as taxas de crimes violentos
mantiveram-se em patamares elevadíssimos. A Organização Mundial de Saúde
informa que taxas de homicídio acima de 10 mortes por 100 mil habitantes são
epidêmicas. A média brasileira, nesse quesito, é de 29 por 100 mil, sendo que
na maioria das capitais essa cifra supera 30 homicídios por 100 mil, chegando,
por exemplo, em Maceió, à estrondosa cifra de 86 por 100 mil, ou seja, oito
vezes mais do que o aceitável. Segundo relatório recente da ONG mexicana
Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal, dentre as 34
nações mais violentas, o Brasil encontra-se em 13º lugar. No ranking das 50
cidades mais violentas do mundo, 15 são do Brasil. Por que assistimos a esse
massacre com tanta passividade?
Não são os
adolescentes infratores os responsáveis por cerca de 45% de mortes por
motivações fúteis (brigas entre vizinhos, discussão no trânsito e no bar,
intrigas passionais). Num país com cerca de 18 milhões de armas de fogo sem
nenhum controle, matar parece ter um custo baixíssimo: 92% dos homicidas
adultos no Brasil não são presos. A ineficiência generalizada no processo de
investigação; perícias deficientes; Justiça seletiva e morosa corroboram a
impunidade. Ou seja, para 92% dos assassinos adultos, não há nenhuma pena ou
punição.
Não são os adolescentes infratores os responsáveis por cerca de 45% de
mortes por motivações fúteis (brigas entre vizinhos, discussão no trânsito e no
bar, intrigas passionais).
Retomando o tema
dos crimes praticados por adolescentes, não percebemos a mesma indignação e
mobilização com a violência generalizada, sistemática e cotidiana cometida
contra crianças e adolescentes, no descumprimento de princípios constitucionais
básicos. Segundo o Mapa da Violência, 8.600 crianças e adolescentes foram
assassinados no Brasil em 2010, colocando nosso país na vergonhosa quarta
posição entre as 99 nações com as maiores taxas de homicídio de crianças e
adolescentes até 19 anos. Dados divulgados pelo Disque 100, serviço da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, dão conta que mais de 120 mil
crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos e agressões naquele ano.
Destaca-se, nesse emaranhado de números, outro dado significativo: menos de 3%
dos suspeitos de terem cometido violência contra crianças e adolescentes tinham
entre 12 e 18 anos incompletos, conforme levantamento feito entre janeiro e
agosto de 2011. Conclusão: quem comete violência contra crianças e adolescentes
são os adultos.
Segundo dados do
IBGE, o Brasil tem cerca de 24 milhões de adolescentes na faixa etária entre 12
e 18 anos. Em 2010, havia 58.764 adolescentes em cumprimento de medida
socioeducativa no Brasil, sendo 18.107 com restrição de liberdade (internação,
internação provisória e semiliberdade) e 40.657 em meio aberto. Do total de
adolescentes em conflito com a lei em 2011, apenas 8,4% cometeram homicídios. A
maioria dos delitos é roubo; em segundo lugar, tráfico.
Ora, a partir
desses números podemos concluir que somente cerca de 0,3% dos adolescentes na
faixa etária entre 12 e 18 anos cumprem medida socioeducativa e apenas 0,09%
deles cumprem medidas em meio fechado, sendo que as infrações praticadas pelos
adolescentes em sua maioria são crimes contra o patrimônio.
(...) somente cerca de 0,3%
dos adolescentes na faixa etária entre 12 e 18 anos cumprem medida
socioeducativa e apenas 0,09% deles cumprem medidas em meio fechado, sendo que
as infrações praticadas pelos adolescentes em sua maioria são crimes contra o
patrimônio.
Como justificar
essa ideia absurda e generalizada segundo a qual todo adolescente é
potencialmente perigoso? Novamente, dados da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos mostram que, entre 2002 e 2011, os casos de homicídio envolvendo
adolescentes apresentaram uma redução de 14,9% para 8,4%; os de latrocínio
(roubo seguido de morte), de 5,5% para 1,9%; e os de estupro, de 3,3% para 1%.
O Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), em pesquisa recente, concluiu que quase a metade do
total de adolescentes infratores realizou o primeiro ato infracional entre os
15 e os 17 anos e a maioria deixou a escola aos 14 anos, entre a quinta e a
sexta séries. E mais: quase 90% não completaram o ensino fundamental.
Estudos
internacionais mostram que a curva da criminalidade na adolescência/juventude
tem seu pico entre 21 e 24 anos. A partir daí, reduz-se drasticamente,
independentemente da idade penal adotada pelo país.
(...) quase a metade do total
de adolescentes infratores realizou o primeiro ato infracional entre os 15 e os
17 anos e a maioria deixou a escola aos 14 anos, entre a quinta e a sexta
séries. E mais: quase 90% não completaram o ensino fundamental.
Um estudo do
Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef) de 2007 (Por
que dizer não à redução da maioridade penal) revela que 79% dos 42 países
pesquisados (incluindo Suécia, Romênia, Portugal, Noruega, Países Baixos,
Japão, Itália, entre outros) adotam a maioridade penal aos 18 anos. Grande
parte, 47% desses países, adota a idade de 13 ou 14 anos como início da
responsabilidade juvenil. No Brasil, a idade fixada é de 12 anos. Abaixo de 12
anos, apenas sete países.
Esses dados são
importantes para refletirmos sobre a baixíssima efetividade de modificações
legislativas motivadas por espasmos de indignação porque, comumente, atuam na
consequência e não nas causas estruturais geradoras da violência e do crime.
Prender um
adolescente de 16 anos e lançá-lo no nosso sistema prisional
("medieval", nos dizeres do atual ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo) significa entregar para o crime organizado – que se encontra nas
prisões – um jovem que, mais cedo ou mais tarde, voltará para a sociedade. Será
que depois da experiência da prisão esse jovem voltará melhor do que quando
entrou?
Sobre isso, veja
o que disse o ministro da Justiça: "Nossos presídios são verdadeiras
escolas de criminalidade. Muitas vezes, pessoas entram nos presídios por terem
cometido delitos de pequeno potencial ofensivo e, pelas condições carcerárias,
acabam ingressando em grandes organizações criminosas. Porque, para sobreviver,
é preciso entrar no crime organizado. Reduzir a maioridade penal significa
negar a possibilidade de dar um tratamento melhor para um adolescente. Vai
favorecer as organizações criminosas e criar piores condições. Criar condições
para que um jovem vá para esses locais, independentemente do delito cometido, é
favorecer o crescimento dessa criminalidade e dessas organizações. É uma
política equivocada e que trará efeitos colaterais gravíssimos."
Prender um adolescente de 16
anos e lançá-lo no nosso sistema prisional ("medieval", nos dizeres
do atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo) significa entregar para o
crime organizado – que se encontra nas prisões – um jovem que, mais cedo ou
mais tarde, voltará para a sociedade. Será que depois da experiência da prisão
esse jovem voltará melhor do que quando entrou?
Contrariando o
senso comum, deve-se afastar uma informação equivocada que povoa o inconsciente
coletivo, segundo a qual o cidadão menor de 18 anos é completamente
irresponsável por seus atos e está imune a qualquer intervenção estatal, mesmo
que pratique um ato análogo a um crime. O Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) determina que os adolescentes, a partir dos 12 anos, estão sujeitos a um
processo de responsabilização diferenciada (artigos 171 a 190), cujas regras –
mesmo tendo finalidade diferente daquelas próprias do direito e do processo
penal – são extremamente punitivas. Aliás, o ECA, tão atacado, não é cumprido
pelo Estado. Numa pesquisa realizada pelo CNJ, apenas em 5% de quase 15 mil
processos de adolescentes infratores havia informações sobre o Plano Individual
de Atendimento (PIA), que permitiria que a medida socioeducativa funcionasse
como possibilidade de mudança e desenvolvimento do adolescente que cometeu um
ato infracional.
Por outro lado,
dados do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato
Infracional de Belo Horizonte dão conta que adolescentes que recebem e cumprem
efetivamente medidas em meio aberto, como liberdade assistida e prestação de
serviço à comunidade, têm menos de 2% de reincidência. Ou seja, esse tipo de
medida é muito mais efetiva que a internação.
Não seria mais econômico e
sensato universalizar as escolas em tempo integral para todas as crianças e
adolescentes brasileiros, proporcionando-lhes políticas protetivas, como
previstas no ECA?
Para adolescentes
que cometem atos infracionais, não seria mais ético investir todas as fichas na
melhoria do sistema socioeducativo, apostando na possibilidade de
"recuperação"? Não seria mais econômico e sensato universalizar
as escolas em tempo integral para todas as crianças e adolescentes brasileiros,
proporcionando-lhes políticas protetivas, como previstas no ECA? Por que não
lutamos pelo agravamento da pena de "corrupção de menores",
desmotivando o (ab)uso de adolescentes por adultos?
Enquanto
apontamos os dedos para adolescentes infratores, milícias e esquadrões da morte
formados, inclusive, por agentes públicos, continuam impunes.
A redução da
maioridade penal pode ser defensável sob o ponto de vista da racionalidade instrumental
pós-moderna, do minimalismo midiático, das emoções pessoais e mesmo do
sentimento coletivo de vingança e punição. Porém, não se sustenta sob o ponto
de vista de uma ética da alteridade, da generosidade e da responsabilidade de
todos nós, adultos, que devemos reconhecer que o segmento mais vulnerável da
nossa população, os adolescentes – tratados como "futuro do país" –,
não tem seus direitos garantidos no presente.
Enquanto apontamos os dedos
para adolescentes infratores, milícias e esquadrões da morte formados,
inclusive, por agentes públicos, continuam impunes.
A querela acerca
da redução da maioridade penal em boa medida é fruto do sensacionalismo e do
desconhecimento em relação à ampliação descomunal do Estado penal. Lastreado na
exploração da emoção e na desinformação da maioria dos brasileiros sobre a
baixa eficiência das políticas públicas protetivas – que deveriam preceder
qualquer medida punitiva –, esse debate sustenta, lamentavelmente, o discurso
oportunista e eleitoreiro de políticos que descumprem impunimente aquilo que
tanto atacam, o ECA.
A querela acerca da redução
da maioridade penal em boa medida é fruto do sensacionalismo e do
desconhecimento em relação à ampliação descomunal do Estado penal.
A relação entre a
violência e a imputabilidade penal é um sofisma. O debate sobre o tempo da pena
ou da idade do infrator é secundário. Serve para lançar uma nuvem de fumaça a
encobrir a questão fulcral: quais são condições objetivas que favorecem a
criminalidade em nosso país?
Nossas crianças e
adolescentes demandam por mais Estado constitucional e menos Estado penal.
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