A questão militar no Brasil precisa
ser enfrentada com destemor, seriedade, sem revanchismo e dentro dos marcos da
democracia e do republicanismo.
Há setores democráticos dentro das
Forças Armadas e das polícias. Mas, parte dos militares brasileiros sempre teve
o intento de tutelar nossa democracia.
A proclamação da república é
considerada a primeira intervenção militar na ordem institucional brasileira.
Nos primeiros anos da República Velha, passando pelos movimentos tenentistas na
década de 1920, a revolução de 1930, a era Vargas, a redemocratização de 1945 e
as tentativas de golpe contra Vargas e Juscelino são episódios da presença dos
militares na política. O momento mais agudo dessa relação se
deu em 1964: a instalação de uma ditadura.
Com o golpe militar instalou-se um
regime de exceção, violência e arbítrio em nosso país: um governo de decretos e
atos institucionais autoritários; políticos eleitos democraticamente foram
cassados; as eleições eram controladas e figuras esdrúxulas, como governadores
e senadores biônicos, foram criadas.
Os generais-presidentes calaram os
meios de comunicação impondo censura e ameaças; houve forte repressão aos
movimentos sociais, sindicais e populares, no campo e na cidade; a utilização
da tortura transformou-se em política de estado; ocorreram diversos
desaparecimentos forçados, exílios e incontáveis violações dos direitos humanos.
O conceito de “inimigo interno”,
derivado da doutrina de segurança nacional instalada pela ditadura,
redirecionou a atuação das nossas Forças Armadas para a vigilância e a
repressão aos brasileiros, em detrimento de seu caráter precípuo: a defesa
contra inimigos externos. Essa ideologia contaminou todo o sistema de justiça
criminal, fazendo com que a perseguição seletiva a cidadãos e movimentos
sociais brasileiros perdurasse após a chamada abertura democrática, até os
nossos dias.
A falta de punição aos perpetradores
da tortura, das graves violações aos direitos humanos e do arbítrio fez com que
essas práticas se institucionalizassem em muitos setores, transformando-se em
políticas de Estado que ainda persistem no presente. Em muitas delegacias,
batalhões, centros de internação de adolescentes, em abordagens policiais, na
ação seletiva da justiça e nas prisões a prática da violência institucional do
Estado, atentando contra princípios elementares dos direitos humanos, ainda
prossegue.
O regime de exceção, além de ter
massacrado militantes de movimentos sociais e estudantis, partidos políticos e
sindicatos de trabalhadores nas cidades, também atingiu grupos sociais mais
amplos, como trabalhadores rurais, urbanos e indígenas e perseguiu, também, milhares
de militares.
Como demonstrou o relatório final da
Comissão da Verdade em Minas Gerais, pela ação, conivência, parceria e omissão
às graves violações de direitos, além dos agentes e órgãos públicos de diversos
setores dos três poderes do Estado que atuaram com os militares, outros atores
sociais (empresas e instituições privadas) foram parceiros do regime
ditatorial. Aliás, as elites nacionais (empresários, mídias, banqueiros,
latifundiários e setores da classe média) sempre foram colaboradoras dos militares
nas rupturas democráticas. Por isso, não é errado nomear o golpe de 1964 como
golpe “civil-militar”. Esses mesmos atores, com a ajuda dos Estados Unidos da
América e liderados pela união umbilical entre a mídia empresarial e justiça
lavajateira urdiram o golpe de 2016 e criaram as bases sociais e políticas para
a assunção de um governo de extrema direita.
Conhecer essa complexa rede de
agentes e instituições públicos e privados partícipes dos golpes
civis-militares é um elemento importante para o desvelamento das armadilhas do
passado e do presente. E é luz para entendermos as imensas violências,
injustiças e desigualdades que ainda vicejam em nosso país.
Não é por acaso que, como nos tempos
medonhos da ditadura, os discursos da violência e do ódio prevalecem em amplos
segmentos sociais nos dias de hoje e, de variados modos, move o governo central.
A gramática da violência, que gera medo e divisão, é a aposta política das
mentes autoritárias.
Vários setores democráticos da
sociedade brasileira sempre repudiaram a ação intervencionista de parte dos
militares nos momentos de crise institucional aguda em nosso país. Por outro,
sempre respaldados pelas elites nacionais, esses segmentos da caserna atuaram à
margem do processo democrático. Isso ocasionou uma ferida congênita na
democracia tupiniquim.
A lei da anistia, de 1979, um pacto
entre elites com o objetivo de colocar, à fórceps, um ponto final nessa
história, acabou surtindo efeito não desejado. A ferida continua aberta e a
ruptura democrática de 2016 comprova que a inexistência de uma justiça de
transição em nosso país viabilizou, novamente, a formação de uma ampla
coalização golpista e elitista, com a participação cada vez mais evidente dos
militares no governo de extrema direita.
Nos dias de hoje, vozes agourentas
clamam pelo passado de arbítrio e exceção. Mas, o Brasil precisa acertar suas
contas com seu passado ditatorial. Por isso, é preciso lutar para que a verdade
ecoe dos porões da ditadura; a memória das vítimas daquele período seja luz da
resistência democrática no presente e a luta por justiça seja a bússola a
indicar o caminho à verdadeira democracia.
Como ex-coordenador da Comissão da
Verdade em Minas tenho o compromisso e o dever ético de repudiar, com
veemência, aqueles que insistem em comemorar o golpe militar de 1964.
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