sexta-feira, 29 de março de 2019

Ditadura nunca mais: pela memória, verdade e justiça



A questão militar no Brasil precisa ser enfrentada com destemor, seriedade, sem revanchismo e dentro dos marcos da democracia e do republicanismo.
Há setores democráticos dentro das Forças Armadas e das polícias. Mas, parte dos militares brasileiros sempre teve o intento de tutelar nossa democracia.
 A proclamação da república é considerada a primeira intervenção militar na ordem institucional brasileira. Nos primeiros anos da República Velha, passando pelos movimentos tenentistas na década de 1920, a revolução de 1930, a era Vargas, a redemocratização de 1945 e as tentativas de golpe contra Vargas e Juscelino são episódios da presença dos militares na política. O momento mais agudo dessa relação se deu em 1964: a instalação de uma ditadura.
Com o golpe militar instalou-se um regime de exceção, violência e arbítrio em nosso país: um governo de decretos e atos institucionais autoritários; políticos eleitos democraticamente foram cassados; as eleições eram controladas e figuras esdrúxulas, como governadores e senadores biônicos, foram criadas.
Os generais-presidentes calaram os meios de comunicação impondo censura e ameaças; houve forte repressão aos movimentos sociais, sindicais e populares, no campo e na cidade; a utilização da tortura transformou-se em política de estado; ocorreram diversos desaparecimentos forçados, exílios e incontáveis violações dos direitos humanos.
O conceito de “inimigo interno”, derivado da doutrina de segurança nacional instalada pela ditadura, redirecionou a atuação das nossas Forças Armadas para a vigilância e a repressão aos brasileiros, em detrimento de seu caráter precípuo: a defesa contra inimigos externos. Essa ideologia contaminou todo o sistema de justiça criminal, fazendo com que a perseguição seletiva a cidadãos e movimentos sociais brasileiros perdurasse após a chamada abertura democrática, até os nossos dias.
A falta de punição aos perpetradores da tortura, das graves violações aos direitos humanos e do arbítrio fez com que essas práticas se institucionalizassem em muitos setores, transformando-se em políticas de Estado que ainda persistem no presente. Em muitas delegacias, batalhões, centros de internação de adolescentes, em abordagens policiais, na ação seletiva da justiça e nas prisões a prática da violência institucional do Estado, atentando contra princípios elementares dos direitos humanos, ainda prossegue.
O regime de exceção, além de ter massacrado militantes de movimentos sociais e estudantis, partidos políticos e sindicatos de trabalhadores nas cidades, também atingiu grupos sociais mais amplos, como trabalhadores rurais, urbanos e indígenas e perseguiu, também, milhares de militares.
Como demonstrou o relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais, pela ação, conivência, parceria e omissão às graves violações de direitos, além dos agentes e órgãos públicos de diversos setores dos três poderes do Estado que atuaram com os militares, outros atores sociais (empresas e instituições privadas) foram parceiros do regime ditatorial. Aliás, as elites nacionais (empresários, mídias, banqueiros, latifundiários e setores da classe média) sempre foram colaboradoras dos militares nas rupturas democráticas. Por isso, não é errado nomear o golpe de 1964 como golpe “civil-militar”. Esses mesmos atores, com a ajuda dos Estados Unidos da América e liderados pela união umbilical entre a mídia empresarial e justiça lavajateira urdiram o golpe de 2016 e criaram as bases sociais e políticas para a assunção de um governo de extrema direita.
Conhecer essa complexa rede de agentes e instituições públicos e privados partícipes dos golpes civis-militares é um elemento importante para o desvelamento das armadilhas do passado e do presente. E é luz para entendermos as imensas violências, injustiças e desigualdades que ainda vicejam em nosso país.
Não é por acaso que, como nos tempos medonhos da ditadura, os discursos da violência e do ódio prevalecem em amplos segmentos sociais nos dias de hoje e, de variados modos, move o governo central. A gramática da violência, que gera medo e divisão, é a aposta política das mentes autoritárias.
Vários setores democráticos da sociedade brasileira sempre repudiaram a ação intervencionista de parte dos militares nos momentos de crise institucional aguda em nosso país. Por outro, sempre respaldados pelas elites nacionais, esses segmentos da caserna atuaram à margem do processo democrático. Isso ocasionou uma ferida congênita na democracia tupiniquim.
A lei da anistia, de 1979, um pacto entre elites com o objetivo de colocar, à fórceps, um ponto final nessa história, acabou surtindo efeito não desejado. A ferida continua aberta e a ruptura democrática de 2016 comprova que a inexistência de uma justiça de transição em nosso país viabilizou, novamente, a formação de uma ampla coalização golpista e elitista, com a participação cada vez mais evidente dos militares no governo de extrema direita.
Nos dias de hoje, vozes agourentas clamam pelo passado de arbítrio e exceção. Mas, o Brasil precisa acertar suas contas com seu passado ditatorial. Por isso, é preciso lutar para que a verdade ecoe dos porões da ditadura; a memória das vítimas daquele período seja luz da resistência democrática no presente e a luta por justiça seja a bússola a indicar o caminho à verdadeira democracia. 
Como ex-coordenador da Comissão da Verdade em Minas tenho o compromisso e o dever ético de repudiar, com veemência, aqueles que insistem em comemorar o golpe militar de 1964.

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