Professor Leonardo Avritzer |
A 24ª fase da operação Lava Jato que levou a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva `a Polícia Federal marca o auge de um processo de desequilíbrio entre os poderes que ameaça distorcer completamente o novo marco de divisão de poderes gerado pela constituição de 1988. O poder judiciário ao aumentar suas prerrogativas no período democrático recente está forjando elementos de um juristocracia que nega a soberania popular e considera a si próprio um poder acima da legalidade. Preceitos da Constituição de 1988 são quebrados com a maior tranquilidade por um juiz de primeira instância e sancionados por um S.T.F. que, sob pressão midiática, parece estar perdendo o seu papel de guardião da Constituição.
A Constituição de 1988 foi produzida a partir da percepção do desequilíbrio histórico entre os poderes, que sempre penderam na direção do Executivo, e da inefetividade das estruturas de peso e contrapesos no Brasil. Como contraponto a esta tradição, diversos atores, antes e durante o processo constituinte, propuseram a criação de fortes marcos legais para o fortalecimento da divisão de poderes, em especial do poder judiciário As principais alterações, nesta direção, foram: (1) o estabelecimento de um complexo e extenso sistema de revisão judicial da constitucionalidade das leis e atos normativos (CRFB/88, arts. 102 e 103); e (2) o reconhecimento e fortalecimento da ampliação das funções do Ministério Público no sentido de fiscalizar políticos e burocratas, aproximando o órgão ministerial da figura das agências burocráticas de accountability horizontal (CRFB/88, art. 127). Essas alterações, propostas tanto pelos atores ligados às instituições judiciais, como pela Associação dos Procuradores da República (ANPR) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), impactaram significativamente no fortalecimento das instituições de controle no período pós-Constituição de 1988 a partir do discurso da representação simbólica da cidadania.
Com consequência do texto constitucional, foi se produzindo um reforço das assim chamadas instituições de controle no Brasil de 1988 até hoje, com o sentido de apontar um novo equilíbrio entre os poderes e reforçar a ideia de uma representação da cidadania pelas instituições de controle. Adicionalmente, nos últimos anos, registrou-se um aprofundamento dessa dimensão da democracia brasileira, não apenas pela criação de novas instituições de controle, tal como a Controladoria Geral da União (CGU), mas também pela ampliação das prerrogativas de algumas já existentes - a exemplo do que ocorreu com o Tribunal de Contas da União (TCU). O Tribunal de Contas da União (TCU), que originariamente tinha atribuições restritas à análise das contas do Presidente, posteriormente passou a fazer auditorias de gestão e aplicar sanções e finalmente em 1988 assumiu as funções de controle externo. Ocorreu também uma verdadeira revolução institucional com as chamadas operações integradas da Polícia Federal.
Nesses termos, o marco constitucional, inaugurado em 1988, pode ser apreendido na chave de um giro radical na ideia de cidadania que passou a estar relacionada às instituições de controle, o que não é completamente compatível com a ideia de uma soberania democrática. Até 2010, houve alguma articulação entre as instituições de controle e as que exercitam a soberania popular. A partir da operação Lava Jato deixou de haver qualquer articulação. Permitam-me desenvolver este argumento.
A divisão da Lava Jato em fases, realizada pela própria Procuradoria Geral da República e pelo juiz Moro, nos permite diferenciar as fases em que ela de fato mirou o combate à corrupção institucionalizada, das fases - em especial a que começou na última semana do segundo turno das eleições e levou à condução coercitiva do ex-presidente Lula para depor no dia 04 de Março - nas quais ela se converteu em uma operação política com vistas a reorganizar o jogo político eleitoral no Brasil. A primeira fase pode ser considerada um avanço na investigação e no combate à corrupção dentro da doutrina de divisão de poderes e de equilíbrio criado no período pós Constituição de 1988. Nesta fase, atores ligados à corrupção sistêmica na Petrobrás foram descobertos e os procedimentos jurídicos cabíveis adotados, através de uma inovação que poderia ser considerada produtiva: a delação premiada que irei comentar mais abaixo. No entanto, encerrada esta fase, que conseguiu produzir bons resultados, seja no que diz respeito à revelação da operação de corrupção dentro da Petrobrás, seja no que toca à recuperação inédita de ativos da empresa, iniciou-se um segundo momento, de conteúdo eminentemente político, que coincidiu com a campanha eleitoral de 2014 e que em 2015 adquiriu o contorno de fortes ataques ao sistema político ancorado no apoio midiático. No início de 2016 a operação Lava Jato pessoalizou o combate a corrupção passando a investigar, ao arrepio do estado de direito, uma pessoa, o ex-presidente Lula ao invés de investigar delitos.
A partir do segundo momento da operação Lava Jato, que se inicia com a sua 7ª fase da operação lançado em Novembro de 2014 e segue até o final de 2015, é possível perceber que a operação foi politizada de diferentes maneiras: em primeiro lugar, ainda durante o período eleitoral foram realizados vazamentos seletivos sobre a eventual participação da presidente e do ex-presidente Lula no esquema de corrupção. Essas informações não se confirmaram quando da revelação da lista de políticos envolvidos no esquema de corrupção da Petrobrás, confeccionada pelo Procurador Geral da República. Este ato, nunca investigado a contento, constitui o primeiro passo não apenas da politização da Lava Jato como também das suas incursões pela seara política, todas feitas com objetivos de influenciar processo político em curso e todas elas realizadas com apoio midiático.
O outro elemento de desequilíbrio da Lava Jato está ligado as chamadas delações premiadas dos empreiteiros. Esta fase começa com a prisão dos principais empreiteiros do país, presidentes de empresas como a OAS, UTC e Camargo Correa, entre outras, Nesta fase começa vigorar o mais forte elemento da Lava Jato a prisão preventiva realizada com o objetivo de forçar a delação premiada. A delação premiada, instituto importado do direito americano no qual é denominada de “plea bargain” foi introduzida no direito penal brasileiro em 2013 com a lei 12.850. No caso da operação Lava Jato, ela associa uma mudança da interpretação da prisão preventiva, (surpreendentemente sustentada pelas cortes superiores com exceção do S.T.F) com a delação premiada. Ressalte-se, neste caso, que a ideia de prêmio não está apenas no nome mas é parte essencial da estratégia da Lava Jato. As reduções de pena aos réus confessos de corrupção sistêmica indicam uma perigosa atitude discricionária do juiz em relação aos réus criando um forte desequilíbrio no ato de julgar. Assim, réus confessos que aderiram a delação premiada puderam passar o natal de 2015 em casa, ao passo que suspeitos sem condenação não tiveram acesso ao mesmo benefício. Alguns réus empreiteiros aderiram à delação premiada depois de sofrerem pressões no cárcere ou terem elementos da sua vida pessoal vazados para a imprensa. E o mais grave o juiz Moro reduziu em quase trinta vezes a pena de condenados por corrupção sistêmica, no caso ex-diretores da Petrobrás em troca de delações políticas. Assim, o segundo momento da Lava Jato tem características diferentes do primeiro. A prisão dos empreiteiros teve como objetivo principal chegar aos membros do sistema político, que Moro considera o principal objetivo da operação, se tomarmos como base o seu texto sobre a operação “Mãos Limpas” na Itália publicado em 2004. Assim, a Lava Jato parou de mirar a corrupção na Petrobrás e passou a ter uma estratégia de criminalização seletiva do sistema político.
O terceiro momento da operação Lava Jato que ocorre nestes primeiros meses de 2016 tem um novo elemento. A pressão seletiva sobre o sistema político por um juiz que se ancorou em um sistema judiciário que ratifica quase que automaticamente as suas decisões deu o sinal verde para politização completa da Lava Jato. Só que agora estas decisões já não têm mais a ver com o sistema Petrobrás e sim com a política nacional. Os vazamentos são todos ligados as figuras Lula e Dilma. Informações relevantes como a da propina de 100.000 milhões de dólares na venda da Peres Compac durante o governo FHC já não são nem sequer investigadas. Três depoimentos mencionando o Senador Aécio Neves levaram seis meses para serem divulgados e não conduzem a quaisquer investigações. Hipóteses de delação premiada que desgastam um partido ou um político são imediatamente vazadas para a imprensa. Perdeu-se assim, já neste terceiro momento da Lava Jato quaisquer elementos de justificação das ações da Lava Jato em termos da investigação e delitos cometidos na Petrobrás.
Mas o fato mais curioso e que aponta para uma clara violação das regras do estado de direito é a pessoalização de elementos criminais pelo juiz Moro. A pessoalização/ politização se dá, antes de tudo, na relação entre o dinheiro da construtora Odebrecht e indícios de ilegalidade. Essa relação é atribuída sem provas e transferida para a discricionariedade do juiz Moro. Assim, não tem nenhum problema as contribuições de campanha da Odebrecht ao PSDB ou ao Instituto FHC, mas as conferências do ex-presidente Lula pagas pela Odebrecht são criminalizadas. Deste modo, uma empresa que tem negócios muito além da Petrobrás e uma boa parte deles no exterior, tem os seus recursos criminalizados seletivamente através da ação discricionária de um juiz de primeira instância. O que de fato preocupa àqueles que prezam o estado de direito no país é o abandono da dimensão investigativa substituída pela prisão e pela coerção na busca da prova não investigada. Nas palavras de um dos promotores da Lava Jato “Existem basicamente dois modos de você responder uma acusação. O primeiro modo é mostrar que aquilo que a pessoa disse é mentira e que está errado. O segundo é desacreditar e tirar a credibilidade das pessoas que te acusam. O que vários acusados têm feito diante da robustez das provas é buscar agredir o acusador, tentando tirar desse modo a credibilidade. Mas isso é criar uma espécie de teoria da conspiração”. O promotor se esquece da terceira possibilidade pouco utilizada na Lava Jato que é a comprovação do crime pela investigação sem coerção física. Ou seja, a força tarefa da Lava Jato opera com hipóteses, nega a presunção da inocência que é substituída por prisões preventivas que tem como objetivo forçar a delação. Assim, temos a criação de uma juristocracia que alega se legitimar em um interesse público não sancionado democraticamente para criminalizar o sistema político.
Fechamos o círculo no que diz respeito a relação entre poder judiciário e os outros poderes. Esta relação se inicia com a promulgação da Constituição onde o legislador constituinte, com toda razão, tentou estabelecer um novo equilíbrio entre os poderes, tentando fortalecer o judiciário e as instituições do sistema de justiça. Com o completo esgarçamento da legitimidade do sistema de representação e um forte enfraquecimento da presidência a partir do ano passado, ficamos com o poder judiciário como o último poder que retêm elementos de legitimidade. Infelizmente, esses elementos não estão sendo utilizados para proporcionar equilíbrio necessário para estabilizar o sistema político, mas para instituir um elemento judicial adicional na luta fraticida que se instaurou no país depois das eleições de 2014. As ações do juiz Moro rompem com o princípio fundamental que organiza o poder judiciário desde Montesquieu, que é o princípio do equilíbrio associado a não ocupação de uma posição de forte visibilidade. Na medida em que Moro se converte em figura pública e ponta de lança de um processo de politização/radicalização do país pela via judicial, luzes amarelas emergem sobre a estabilidade institucional da democracia brasileira. Caberá ao guardião supremo da Constituição, o S.T.F., avalizar ou não a aventura de politização do judiciário que pode conduzir o país a uma radicalização política e social a la Venezuela.
Leonardo Avritzer - Cientista Político e Professor da UFMG
Fonte: GGN.
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