Grupos conservadores e bancada da bala no Congresso querem acabar com estatuto que, apesar de não resolver todos os problemas da violência armada, é importante instrumento para a diminuição dos homicídios no Brasil.
Lamentavelmente, a Comissão Especial que analisa mudanças no Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03), em vigor desde
2003, aprovou nesta terça-feira (27/10) o texto do deputado mineiro e
relator Laudivio Carvalho (PMDB-MG) que afrouxa as regras para o porte e a
compra de armas de fogo. O projeto ainda precisa ser aprovado pelo plenário do
Senado para virar lei. Da Comissão Especial da Câmara, o projeto segue direto
para a análise do plenário do Senado. Caso algum deputado entre com um recurso,
o texto pode também ser votado pelo plenário da Câmara. Após uma eventual
aprovação nas casas legislativas, ele segue para sanção (ou veto) da presidenta
Dilma Rousseff.
Enquanto na Câmara dos Deputados parlamentares
ligados à bancada da bala patrocinam
essa irresponsabilidade populista, o Mapa
da Violência 2015 defende a importância da lei na redução das mortes com
arma de fogo. De acordo com o relatório, o Estatuto foi responsável por poupar
160.036 vidas desde sua sanção pelo presidente Lula, em 2003. Desde total de
pessoas salvas, o estudo indica que 113.071 foram jovens na faixa etária entre
15 e 29 anos.
Entre os anos de
1980 e 2010, as mortes causadas por armas de fogo no Brasil aumentaram 346%,
segundo o Mapa da Violência 2013. O
levantamento, feito pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e pela
Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, traçou um amplo panorama da
evolução da violência letal no período. A pesquisa analisou as mortes por armas
de fogo decorrentes de agressão intencional de terceiros (homicídios),
autoprovocadas intencionalmente (suicídios) ou de intencionalidade desconhecida
cuja característica comum foi a morte causada por uma arma de fogo.
(A linha vermelha mostra a curva dos homicídios entre 1993 e 2012, enquanto que a verde é a evolução esperada caso não houvesse o Estatuto do Desarmamento. / MAPA DA VIOLÊNCIA).
De acordo com
esse estudo, o crescimento da mortalidade por armas de fogo foi maior entre as
pessoas com idade entre 15 e 29 anos (414%), se comparado com o conjunto da
população (346,5%). Os homicídios de jovens cresceram de forma mais acelerada:
na população como um todo foi 502,8%, mas entre os jovens o aumento foi 591,5%.
De cada três mortos por arma de fogo, dois estão na faixa dos 15 a 29 anos. Os
jovens representam 67,1% dos mortos por arma de fogo no Brasil. Em 30 anos, um
total de 799.226 pessoas morreram vítimas de armas de fogo. Desses, 450.255 mil
eram jovens entre 15 e 29 anos de idade.
Outra pesquisa,
do Conselho Nacional do Ministério Público, divulgada em 2012, e elaborada a
partir de inquéritos policiais referentes a homicídios acontecidos em 2011 e
2012, em dezesseis Unidades da Federação, apontou que as maiores causas de
homicídios decorreram de motivos fúteis, como “brigas, ciúmes, conflitos
entre vizinhos, desavenças, discussões, violências domésticas, desentendimentos
no trânsito”. Portanto, ao contrário do senso comum e dos abutres midiáticos
sensacionalistas, significativa parte dos homicídios no Brasil não é fruto de
guerras originadas das disputas do tráfico de drogas.
Não obstante os impactos do Estatuto e das
campanhas pelo Desarmamento, que passaram a vigorar a partir de 2003, incidindo
na redução no número de armas ilegais em circulação, o alto índice de
homicídios provocados por armas de fogo mostra que o desafio de debelar os
homicídios ainda é grande.
Porém, as indústrias das armas e da segurança
privada, poderosíssimas, patrocinam nova investida contra o Estatuto. O projeto
de lei nº 3.722/12 (e outros apensados), pronto para ser votado no Congresso, visa
a anular os avanços do Estatuto do Desarmamento quanto à aquisição, posse,
porte e circulação de armas e munições.
Segundo o “Mapa do Tráfico Ilícito de Armas no
Brasil e o Ranking dos Estados no Controle de Armas Brasil”[1], o país tem hoje 16
milhões de armas de fogo, sendo que 80% estão nas mãos de civis, e ocupa o
primeiro lugar no ranking de crimes por arma de fogo no mundo, com 34,3 mil
homicídios anuais. Desse total, 14 milhões de armas (87%) estão nas mãos de
civis e 2 milhões com o Estado, ou seja, 13% do total apurado.
Uma reportagem do jornal O Globo[2],
de 23 de setembro de 2014, informa que um relatório divulgado pelo Centro
Regional das Nações Unidas para a Paz, Desarmamento e Desenvolvimento na
América Latina e Caribe (UN-LiREC), revela que o Brasil é o segundo país onde
há mais ocorrências de balas perdidas da América Latina e o terceiro com o
maior número de mortes por elas provocadas. O levantamento foi feito a partir
de reportagens publicadas em 27 países. No Brasil, 35% das ocorrências
analisadas resultaram em morte.
O ranqueamento internacional contabilizou 22
brasileiros mortos e 53 feridos, entre 2009 e 2013. Uma amostragem feita pelo
jornal aponta, porém, que somente no Rio de Janeiro pelo menos 22 pessoas
morreram vítimas de balas perdidas entre janeiro e setembro, sendo que nove
eram crianças de até 12 anos de idade.
O UN-LiREC mapeou 550 ocorrências envolvendo
balas perdidas em 27 países do continente, totalizando, entre mortos e feridos,
617 pessoas. A Venezuela é o país que guarda o maior número de casos de balas
perdidas e de mortes, 74 e 67, respectivamente. Segundo lugar no número de
casos, com 71, o Brasil fica atrás da Colômbia em mortes, com 29 óbitos,
enquanto foram registradas 36 mortes de colombianos. Já em relação aos feridos,
o Brasil tem o maior número de ocorrências do continente, com 53 feridos.
Ainda segundo a reportagem do jornal, tendo como
fulcro os dados divulgados pelo UN-LiREC, no Brasil, o maior número de casos
tem como origem algum tipo de intervenção policial, como perseguição a supostos
criminosos (27% das ocorrências). Em segundo lugar, estão os tiroteios entre
gangues ou quadrilhas, com 24%, acompanhados por disparos efetuados durante
assaltos 20%. Outro dado chama a atenção: 10% dos casos são devidos a conflitos
interpessoais em que as testemunhas acabam alvejadas. No entanto, em 40% dos
casos não foi possível determinar a causa dos disparos.
Um amplo estudo
sobre os impactos de políticas de desarmamento em vários países, feito por Daniel Cerqueira, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, e ganhador do prêmio BNDES de melhor tese
em 2013(veja tabela abaixo), é esclarecedor. Nas últimas duas décadas, vários
estudiosos de diversas áreas do conhecimento se debruçaram sobre a relação
entre a disponibilidade de armas de fogo e o cometimento de crimes. A conclusão
é a seguinte: menos armas, menos crimes.
Tabela 1–
Armas e crimes segundo vários autores
Artigo
|
Localidade
|
Período
|
Método
|
Resultados em relação às armas
|
Lester (1991)
|
16 nações europeias
|
1989
|
Correlação
|
Alta correlação com homicídios por PAF
|
Killias (1993)
|
14 países desenvolvidos
|
1989
|
Correlação
|
Alta correlação com homicídios e com suicídios
com e sem o uso de arma
|
Sloan et al. (1988)
|
Seattle e Vancouver
|
1980 a 1986
|
Comparação de diferença de médias
|
Correlação com lesões dolosas por PAF e com
homicídios por PAF
|
Kellermann et al. (1993)
|
EUA (Tennessee, Washigton e Ohio)
|
1987 a 1992
|
Regressão logística
|
A posse da arma é um fator de risco para algum
familiar sofrer um homicídio
|
Kleck (1979)
|
EUA (dados agregados)
|
1947 a 1973
|
2SLS
|
Elasticidade em relação aos homicídios = 0,4
|
Cummings et al. (1997)
|
EUA (dados por setor censitário)
|
1940 a 1993
|
Regressão logística
|
A arma em casa dobra a probabilidade de alguém
sofrer suicídio ou homicídio no domicílio
|
McDowall (1991)
|
EUA (Detroit)
|
1951 a 1986
|
GLS com variáveis instrumentais
|
Elasticidade em relação aos homicídios = 1,3
|
Lester (1991)
|
16 nações europeias
|
1989
|
Correlação
|
Alta correlação com homicídios por PAF
|
Stolzenberg e D’Alessio (2000)
|
EUA (Carolina do Sul)
|
1991 a 1994
|
OLS com
efeito fixo
|
Crimes violentos, crimes praticados com armas
e crimes perpetrados por jovens respondem à disponibilidade de armas ilegais,
mas não de armas legais
|
Cook e Ludwig (2002)
|
EUA (dados por cidade)
|
1987 a 1998
|
IV2SLS
|
Elasticidade da arma em relação às invasões a
domicílios entre 0,3 e 0,7
|
Moody e Marvell (2002)
|
EUA (dados por estado)
|
1977 a 1998
|
Pooled OLS
|
Não há relação de causalidade entre armas e
crimes
|
McDowall, Loftin e Wiersema (1995)
|
EUA (grandes cidades da Flórida, Mississipi e
Oregon)
|
1973 a 1982
|
Modelos de intervenção baseado em ARIMA
|
A SI não teve efeito sobre os homicídios, mas
fez crescer os homicídios por PAF
|
Lott Jr e Mustard (1997)
|
EUA (dados por cidades e estados)
|
1977 a 1992
|
Pooled OLS e IV2SLS
|
A SI fez diminuir os crimes violentos
|
Duggan (2001)
|
EUA (dados por cidades e estados)
|
1980 a 1998
|
Regressão em diferenças
|
Elasticidade em relação aos homicídios = 0,2 e
não houve efeito da SI sobre crimes
|
Bartley e Cohen (1998)
|
EUA (por cidades)
|
1977 a 1992
|
Regressão (extreme bound analysis)
|
A SI levou a uma diminuição dos crimes
violentos
|
Ludwig (1998)
|
EUA (dados por estados)
|
1977 a 1994
|
Diferenças em diferenças em diferenças
|
O efeito da SI ou foi nulo ou foi no sentido
de aumentar o homicídio de adultos
|
Bronars e Lott Jr (1998)
|
EUA (dados por cidades)
|
1977 a 1992
|
Pooled OLS e IV2SLS
|
A SI fez diminuir os crimes violentos
|
Dezhbakhsh e Rubin (1998, 1999)
|
EUA (dados por cidades e estados)
|
1977 a 1992
|
2SLS
|
Pequena queda no número de homicídios, aumento
dos roubos, e ambiguidade nos demais crimes
|
Stolzenberg e D’Alessio (2000)
|
EUA (Carolina do Sul)
|
1991 a 1994
|
OLS com
efeito fixo
|
Crimes violentos, crimes praticados com armas
e crimes perpetrados por jovens respondem à disponibilidade de armas ilegais,
mas não de armas legais
|
Cook e Ludwig (2002)
|
EUA (dados por cidade)
|
1987 a 1998
|
IV2SLS
|
Elasticidade da arma em relação às invasões a
domicílios entre 0,3 e 0,7
|
Moody e Marvell (2002)
|
EUA (dados por estado)
|
1977 a 1998
|
Pooled OLS
|
Não há relação de causalidade entre armas e
crimes
|
McDowall, Loftin e Wiersema (1995)
|
EUA (grandes cidades da Flórida, Mississipi e
Oregon)
|
1973 a 1982
|
Modelos de intervenção baseado em ARIMA
|
A SI não teve efeito sobre os homicídios, mas
fez crescer os homicídios por PAF
|
Lott Jr e Mustard (1997)
|
EUA (dados por cidades e estados)
|
1977 a 1992
|
Pooled OLS e IV2SLS
|
A SI fez diminuir os crimes violentos
|
Duggan (2001)
|
EUA (dados por cidades e estados)
|
1980 a 1998
|
Regressão em diferenças
|
Elasticidade em relação aos homicídios = 0,2 e
não houve efeito da SI sobre crimes
|
Bartley e Cohen (1998)
|
EUA (por cidades)
|
1977 a 1992
|
Regressão (extreme bound analysis)
|
A SI levou a uma diminuição dos crimes
violentos
|
Fonte: Cerqueira, 2014, pp. 111 e 112.
SI (“Shall Issue”): mudança de lei que
flexibilizou o porte de armas nos EUA.
Assim sendo, ao que tudo indica, existe uma
relação causal entre armas de fogo e crimes como homicídios e suicídios e,
certamente, políticas de desarmamento podem incidir favoravelmente na redução
de tais crimes:
Menos armas, menos crimes? Nas últimas duas décadas, vários estudiosos de diversas áreas do conhecimento se debruçaram sobre essa questão. Não obstante a escassez de dados sobre a prevalência de armas e as dificuldades metodológicas subjacentes, a resposta parece ser positiva. (CERQUEIRA, 2014, p. 147).
[1] O “Mapa do Tráfico Ilícito de Armas no Brasil e o
Ranking dos Estados no Controle de Armas Brasil” foi divulgado em dezembro de
2010 pelo Ministério da Justiça em parceria com oViva Rio. Detalhes em: http://www.vivario.org.br/publique/media/TEXTO%20LAN%C3%87AMENTO%20LIVROS%20III.pdf.
Veja também: http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIA-a-rota-das-armas-ate-o-crime.
Acesso em 27.set.2014.
[2]
A reportagem completa está
disponível no link: http://oglobo.globo.com/brasil/brasil-o-segundo-pais-sofrer-com-balas-perdidas-na-america-latina-14016759.
Acesso em 25.09.2014.
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