Investir em mais repressão, mais prisões e mais mecanismos de controle é caro, ineficiente e antidemocrático. Mas, por que se gasta tanto dinheiro com esses remédios amargos que não servem para nada?
Wacquant (1999) aponta que em diferentes sociedades ocidentais —particularmente
nos Estados Unidos — a retração do espaço anteriormente ocupado pelo
estado-providência, até 1979, estimulou a rápida expansão do estado penal, mais propriamente das
políticas de contenção rigorosa de criminosos e de repressão a potenciais
autores de crimes.
A lógica da contenção dos criminosos (utilizando-se de mecanismos de
classificação, rotulação e estigmatização[1]) é uma das
consequências da racionalidade pós-moderna, ancorada no conceito de ordem e na certeza
da razão, a potencializarem um sentimento de poder para o homem que, até então,
se achava incapaz de dominar a ciência e a natureza. A pós-modernidade é esse
simulacro do constante progresso.
Para Baumer (1997), os pilares da modernidade sofrem profundo abalo em
virtude da evolução tecnológica, da crescente globalização e das novas
concepções de tempo e espaço. Essas certezas desmoronaram, num mundo cada vez
mais complexo, com o fim das fronteiras nacionais, das restrições ao comércio e
o aumento da interdependência (econômico-cultural) entre os países.
A racionalidade moderna, fundada no iluminismo, passa a ser questionada,
pois não dá conta da complexidade da sociedade contemporânea. Assim, o Estado,
para reafirmar a sua legitimidade, utiliza cada vez mais de medidas ditas “eficazes”
de controle social, como, por exemplo, a expansão do sistema punitivo penal. Os
discursos e políticas expansionistas encontram eco nos espectros políticos e
grupos sociais conservadores, que agora enxergam na punição um mecanismo de
defesa de seus interesses (Sanchez,
2001), em virtude da mudança na estrutura social e nas sensibilidades culturais
contemporâneas (Garland, 2008).
E dentro deste amplo espectro de possibilidades de intervenção,
observamos na área da segurança pública uma profunda crise de legitimidade do
Estado. Fragilizado frente à expansão do mercado privado da segurança e
pressionado pela sociedade que anseia por respostas rápidas frente ao aumento
dos crimes, o Estado utiliza, em doses cavalares, as políticas de segurança
pública numa perspectiva reativa, visando à repressão criminal e ao
encarceramento em massa de pobres, negros, pequenos usuários e microtraficantes
de drogas e daqueles que não têm acesso à Justiça seletiva.
Nas últimas décadas observamos uma expansão
expressiva do sistema prisional no Brasil.
O Gráfico
1, abaixo, aponta o vertiginoso crescimento da população de presos no Brasil[2] em
20 anos, com um incremento de 450%. Pode-se observar que a partir de 2002 há
uma aceleração na curva ascendente de crescimento. Considerando-se essas duas
décadas, os Estados Unidos, no mesmo período, cresceram 77%, China, 31% e
Rússia, 17%. Enquanto a população carcerária brasileira (de 1990 a 2010) mais
que quintuplicou, o crescimento nos países citados nem sequer dobrou (Gomes, 2011).
Gráfico 1 - Evolução da população
carcerária brasileira (1990 - 2012)
Fonte: INSTITUTO AVANTE BRASIL, 2013, com dados do
Infopen, Ministério da Justiça.
Não obstante o aumento no número dos presos, as taxas
de crimes violentos continuam elevadíssimas; as condições insalubres e
geradoras de violência no sistema prisional não foram superadas - atribui-se a
essa situação a criação da maior organização criminosa da atualidade, o chamado
Primeiro Comando da Capital (PCC)[3] -;
a reincidência criminal continua em patamares também altíssimos, segundo variadas
fontes[4].
Examinando detidamente a situação brasileira, além
obviamente do aumento da criminalidade violenta a partir da década de 1980, três
fatores que alimentam a expansão prisional, denominados como os inputs, estão expostos através da Figura
seguinte.
Figura 1
- Principais fatores
que alimentam e inflam o sistema prisional brasileiro
Fonte: Souza; Marinho (2011); Marinho;
Souza (2012, p.23).
Ao centro da Figura 1, uma bolha, representada pelo
Sistema Prisional Brasileiro e, nas extremidades, três mecanismos estruturais
que alimentam tal bolha: o tradicionalismo penal/punitivo; a ineficiência na
reinserção social do condenado/ reincidência criminal e os presos provisórios.
Esses três grandes inputs, imbricados, alimentam a expansão e a reprodução de um sistema
prisional, congregando os aspectos mais amplos da cultura punitiva brasileira: “mais
sensível” aos atos delitivos cometidos por pessoas pertencentes a grupos ou
classes sociais em situação de desvantagem socioeconômica. Isso, não obstante
termos uma legislação, seguindo tendência internacional, de valorização da
pessoa humana, preconizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948 e outros diplomas legais.
Os investimentos na ampliação do número de vagas
prisionais geralmente se baseiam em argumentos relacionados aos problemas de
aumento da criminalidade e impunidade dos agressores, bem como os gerados pela
superlotação de cadeias e por rebeliões e fugas (SÁ, 1996). A atual situação
prisional brasileira, além de produzir uma pressão sobre o próprio sistema,
repercutindo numa expansão desmedida do mesmo, torna-o perverso, basicamente
punitivo e incapaz de promover aos condenados a possibilidade de retorno ao
convívio em sociedade. Outro revés decorrente da ineficiência para a
reabilitação dos condenados é justamente o de tornar a criminalidade um
problema crônico, gerando ônus social de todas as ordens e em ritmo crescente,
como uma bola de neve (SÁ, 1996). Apesar da hipótese levantada por Goertzel e
Kahn (2009), por exemplo, de que o fortalecimento do sistema prisional e
penitenciário contribuiu para o declínio das taxas de homicídio em São Paulo,
consideramos que ocorreu apenas um arrefecimento temporário que não atinge as
causas primárias do problema. Ou seja, expandir o sistema prisional per se não é garantia de segurança
pública, nem de diminuição do problema da violência.
Na Imagem I, abaixo, observamos que, não obstante o
aumento da população carcerária e o gasto elevado e crescente com segurança
pública, as taxas de homicídios no Brasil são altíssimas se comparadas com
outros países. Se levarmos em consideração a recomendação da ONU (que considera
como epidêmica taxas de homicídios superiores a 10 assassinatos por grupo de
100 mil habitantes), chegamos à conclusão da gravidade da situação brasileira.
Na média, a taxa de homicídios por 100 mil é superior a 25, no país, sendo que
em alguns estados essa taxa chega a ser de 65 por 100 mil. Se analisarmos
grupos vulneráveis, como jovens, pobres e negros, essa taxa supera os 100
homicídios por grupo de 100 mil.
Ainda na imagem abaixo, observamos que no período
entre 2007 e 2012, somente 10 estados brasileiros conseguiram diminuir sua taxa
de homicídios. Não obstante, no mesmo período houve aumento nos gastos com
segurança pública em 22 estados brasileiros.
Imagem I - Indicadores de homicídios e gastos com segurança no Brasil
Fonte:
Edição Eletrônica do “El País”. Disponível em: (http://elpais.com/elpais/2013/11/17/media/1384710719_441013.html).
Acesso em 10.09.2015.
Verificamos, então, que, no Brasil, apesar das
mudanças no sistema de justiça penal, o sentido de punição continua a ser mais
contundente que o de mediação de conflitos ou reconciliação[5].
De um modo geral, a pena prisional tem produzido
muito mais um efeito punitivo, no sentido de destruição da integridade do
indivíduo condenado, devido às péssimas condições e inadequações do tratamento
dado aos presos, que correcional, visando reconciliar a sua relação com o corpo
social mais amplo (OTTOBONI, 2006).
A pergunta óbvia é a seguinte: vale a pena continuar gastando dinheiro com esse modelo caduco de segurança pública, baseado na ampliação do estado penal? Ou, não seria a hora de se discutirem mudanças estruturais para a política de segurança pública brasileira?
Questionamos, assim, de que forma a atual expansão do
Sistema Prisional representaria ou não uma alternativa para a diminuição da
criminalidade. Sob quais aspectos dessa realidade penal a segurança pública e a
cidadania poderiam ser substancialmente contempladas? Primeiramente,
reconhecemos que a punição deve cumprir um papel reconciliador entre sociedade
e pessoa presa e, para isso, tratamentos coerentes aos princípios da Lei de
Execução Penal e da Declaração Universal dos Direitos Humanos são percebidos
como fundamentais. É necessário também que a sociedade, e que a opinião
pública, percebam como legítimo o tratamento humanitário aos presos e isso
depende da participação da comunidade na realidade prisional, condição
necessária para derrubar mitos, estereótipos e preconceitos e outras
representações sociais estigmatizantes relacionadas à imagem do preso. Por
outro lado, a pena privativa de liberdade tem representado, no modelo prisional
tradicional, uma dimensão amplamente excludente, na qual o apenado não é apenas
privado da vida em sociedade, mas é literalmente apartado dela.
Segundo o Centro Internacional de Estudos Carcerários
do King’s College, em alguns países, paradoxalmente, a prisão é um recurso
menos utilizado que em outros tempos. Na Inglaterra, em 1954, um em
cada três assaltos resultava em uma pena de prisão; hoje, a
proporção é de um aprisionamento para cada 22 assaltos. Para roubos,
o diferencial é maior: em 1954, um em cada 18; agora, um para cada 59. De
acordo com o estudo, se a Grã-Bretanha prendesse na mesma
proporção de pessoas que há 50 anos, haveria 290 mil pessoas na
prisão[6].
Bibliografia:
BAUMER, Franklin Le Van. O pensamento europeu moderno: séculos
XVII e XVIII. Lisboa: Edições
70, 1997. v.1.
DIAS, Camila Caleira Nunes. PCC: hegemonia nas prisões e monopólio
da violência. São Paulo: Saraiva, 2013. (Coleção Saberes Monográficos).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 32. ed. Petrópolis: Vozes,
1987.
GARLAND, David. A
cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
GOMES. Luiz Flávio. População prisional: Brasil vai passar EUA em 2034. Instituo de
Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Disponível em:
.
Acesso em: 13 mar. 2011.
GOERTZEL,
Ted; KUHN, T. The Great São Paulo Homicide Drop. Homicide Studies 2009, SAGE Publications Reprints and permission. Disponível
em: . Acesso 12 dez.
2010.
OTTOBONI, Mário. Vamos matar o criminoso? Método APAC.
3. ed. São Paulo: Paulinas, 2006.
SÁ, Ribeiro Geraldo. A prisão dos excluídos: origens e reflexões sobre a pena privativa
de liberdade. Diadorim:
EDUFJF, 1996.
SOUZA,
Robson Sávio Reis; MARINHO, Marco Antônio Couto. Expansão
do Sistema Prisional no Brasil: reveses e possibilidades para o século XXI. GT21 -
Segregação social, políticas públicas e direitos humanos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 15, 2011.
Anais...Curitiba. Disponível em: <
http://www.sbsociologia. com.br/portal/index.php?option=com_
docman&task=doc_download&gid =2210& Itemid=171.>. Acesso em: 10
out. 2013.
Wacquant, Loïc. As
prisões da Miséria. 1999. Disponível em:
Acesso em: 20 ago. 2013.
Nota: Agradecimento a Marco Antônio Marinho pela colaboração na análise sobre o sistema penitenciário brasileiro.
[1] Segundo Goffman (1980) a sociedade estabelece um
modelo de categorias: cataloga os indivíduos conforme atributos considerados
comuns (ou “naturais”), pelos membros dessa categoria. Determina em quais
categorias as pessoas pertencem, seus atributos, etc. Em outras palavras, a
sociedade define um padrão externo ao sujeito – que prevê a categoria, os
atributos, a identidade social e as relações que essa pessoa deve estabelecer
com seu meio.
[2] Segundo a definição disponível pelo Departamento
Penitenciário Nacional (DEPEN), no Brasil, os estabelecimentos prisionais são
classificados como: Cadeias Públicas ou Similares; Casa de Albergado; Centro de
Observação; Colônia Agrícola, Industrial ou Similar; Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico; Penitenciárias, estas unidades prisionais são
administradas considerando o sexo, o tipo de regime de pena privativa de
liberdade e o número de vagas – como determina a Constituição Federal
Brasileira o Código Penal e a Lei de Execuções Penais. (BRASIL, 2008).
[3]
Sobre este tema vale a pena ler DIAS (2013). A autora reconstitui o processo de
expansão e consolidação do PCC nas prisões de São Paulo e analisa sua atual
estrutura e seu funcionamento.
[4]
Segundo informações do Conselho Nacional de Justiça, seu Departamento de
Pesquisas Judiciárias fará um estudo para determinar a taxa de reincidência
criminal no Brasil. Trata-se do primeiro estudo técnico sobre o assunto. Embora
se estime que a taxa de reincidência é alta, ainda não existem dados confiáveis
para subsidiar a tomada de decisões pelos poderes públicos. Para a
realização do trabalho, o CNJ contratou o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA). (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012).
[5]
Como descrito por Foucault (1987), em “Vigiar e Punir”, as penas mudaram do
suplício - a exemplo do esquartejamento por parricídio -, para o
aprisionamento.
[6]
Segundo informações do Internacional Centre for Prison Studies
(ICPS), em 2010 havia 84.725 presos no Reino Unido.
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