domingo, 21 de outubro de 2018

Uma competição viciada e desproporcional


Em artigo anterior, definimos as três principais características de democracias de fato, para além do mero procedimentalismo dos regimes democráticos. Democracias de verdade se caracterizam pela:
a)      criação e expansão de direitos;
b)     existência e reconhecimento dos conflitos (a possibilitarem a vocalização e a disputa das várias demandas dos diferentes grupos que compõem sociedades plurais);
c)     respeito à soberania popular. É do povo que deriva todo o poder.
No Brasil, há algum tempo, o establishment - que não aceita uma democracia de fato (para além da democracia procedimental) e se julga melhor e mais qualificado que o conjunto da população - resolveu mandar às favas o estado democrático e de direito e o (precário) pacto da Constituição de 1988 (que não rompeu com históricos vícios de uma sociedade baseada na violência estrutural).
As jornadas de 2013 capturadas pela ultradireita, a não aceitação do resultado das eleições de 2014 e o impeachment fajuto parlamentar-judiciário de 2016 são os sinais mais claros desse movimento de marcha à ré liderado pelas elites nacionais.
O segundo turno das eleições deste ano poderá (ou não) coroar esse processo de desdém à Constituição e da soberania popular.
Qualquer observador minimamente atento percebe que as eleições deste ano se transformaram num simulacro da pseudodemocracia tupiniquim. Ouvir Rosa Weber e outros capapretas falando que as instituições funcionam normalmente é patético.
E fica cada vez mais evidente que a desproporcionalidade na disputa eleitoral torna o processo viciado, fraudulento e corrompido, com as bênçãos da justiça.
Os segmentos que lideraram as rupturas anteriores não obtiveram êxito no primeiro turno das eleições, principalmente na disputa presidencial. Restou-lhes a união em torno da candidatura de extrema direita e ultraliberal que, sem nenhum pudor, com seu programa de governo afronta claramente os mais basilares princípios democráticos e constitucionais. É claro que num ambiente verdadeiramente democrático, essa candidatura não prosperaria.
A desproporcionalidade da disputa desde o final do primeiro turno, tornando-a claramente corrompida, pode ser caracterizada pela composição e pelo modus operandi da coalizão que se articulou em torno da candidatura ultraconservadora, ultraliberal e de extrema direita e que tem como principais atores:
a)     elites econômicas: empresários, o agronegócio e banqueiros despejam rios de dinheiro nessa campanha. A expedição de notícias falsas em doses cavalares através de grupos de Whatsapp e a produção deliberada de conteúdo falsos espalhados em redes sociais, com recursos financeiros não contabilizados, às vésperas do primeiro turno tutelou, sem nenhuma sombra de dúvida, a decisão do eleitor. As mensagens foram cuidadosamente pensadas para atingir o imaginário e o emocional de uma sociedade amedrontada e moralista: acusavam o candidato do PT, sem provas e sem nenhuma evidência empírica, de desrespeitar valores familiares, de práticas violentas, de alianças com “demônios” inexistentes. Guiado por um tsunami de mensagens desonestas e falsas, o eleitor não tinha instrumentos nem condições de averiguar os fatos. Formou opinião de última hora baseado em mentiras deslavadas. Isso explica o movimento abrupto do eleitorado na semana do primeiro turno, que impulsionou várias candidaturas de ultradireita nas disputas do executivo, principalmente na disputa presidencial, e do legislativo (notadamente no Congresso).
b)    Elites da burocracia estatal: juízes, promotores, policiais e outros funcionários públicos do alto escalão que são prepostos e/ou parceiros das elites econômicas e ultraliberais no aparelho estatal vêm atuando sistematicamente, por ações, conivências e omissões para o atendimento das demandas dos setores do establishment contra a ordem democrática. Segmentos do sistema de justiça - mais preocupados em perseguir e destruir biografias de políticos escolhidos a dedo -, não somente permitiram, mas foram coniventes com esse processo visivelmente maculado. Militares voltaram a atuar politicamente, ao arrepio da Constituição. Já comprometidos com todo o processo anterior de ruptura democrática e institucional, esses grupos de elites de burocratas estatais tratam de articular, nesse momento, as condições jurídicas e institucionais para a consolidação, via processo fraudulento, de uma ordem autoritária que poderá emergir do pleito.
c)     Participação de think tanks norte-americanos: são instituições que financiam formadores de opinião na mídia, em espaços acadêmicos e junto a grupos religiosos neopentecostais dentro do protestantismo e do catolicismo. Essas instituições dos EUA investem há muito tempo na formação de uma ampla rede de influenciadores que atuam em universidades, imprensa, igrejas, clubes de serviço, empresas, ONG’s, sociedades secretas, divulgando princípios ultraliberais e antidemocráticos, com impacto em amplos segmentos da vida social. Esses influenciadores criaram uma imensa rede de agentes políticos que são incapazes de defenderem valores democráticos; odeiam quaisquer políticas que visam a justiça e a igualdade e só pensam nos seus interesses privados. São contra um estado social e preferem entregar todo o patrimônio nacional aos estrangeiros desde que seus privilégios de classe sejam mantidos. Dentro do cristianismo, uma verdadeira disputa foi deflagrada, fazendo com que os grupos ultraconservadores e moralistas ressuscitassem velhos discursos de uma “guerra santa”, justificando o injustificável: a defesa fanática de uma candidatura que confronta, claramente, com todos os valores do Evangelho de Cristo. O discurso moralista de base religiosa impulsiona principalmente os segmentos ultraconservadores da classe média, formadores de opinião, que, há muito, perderam todo o escrúpulo e não se incomodam nem um pouco em demonstrar sua mentalidade e práticas escravocrata e elitista, em nome de Deus.
d)    Utilização da mídia empresarial:  que se consolidou como um instrumento de controle e manipulação da informação na tentativa de imposição de um pensamento único. De forma hermética, os grandes grupos de comunicação atuam em uníssono para favorecer o lado da disputa que atende os interesses da coalização ultraliberal.

O segundo turno é a próxima trincheira em disputa. Para consolidar a ruptura democrática e a imposição de um governo autoritário e das elites, a coalizão que se formou em torno do candidato de ultradireita usa armamento de uma guerra híbrida nessa empreitada, sem escrúpulo e ao arrepio da lei. As eleições se travestem de pseudolegalidade para consolidar o simulacro democrático.
Um importante detalhe a ser destacado. Desde a mudança radical de posicionamento do Supremo, quando se deixou o garantismo, implantado com a Constituição de 1988, para a adoção proposital e enviesada da teoria do “domínio de fato”, a inaugurar uma justiça política seletiva, o sistema judicial começou a agir deliberadamente para criar as condições de desconstrução do pacto constitucional. O Supremo, gradualmente, deixou de defender a Constituição – que em seu preâmbulo determina a instituição um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias -, e passou a responder a demandas e expectativas da mídia, de grupos políticos elitistas e  de setores ultraconservadores da sociedade.
 Por excesso de republicanismo ou ingenuidade, as esquerdas, lideradas pelo PT, apostaram na institucionalidade e no sistema de justiça. Calcularam que agradando as elites jurídicas do país, os tribunais superiores e o Supremo, no limite, defenderiam a Constituição. Ledo engano...
Paradoxalmente, os setores golpistas e de extrema-direita - que foram se avolumando e conquistando vários segmentos conservadores da sociedade - jogaram duro e sujo contra as instituições republicanas e a justiça. O filho do capitão-candidato chegou a dizer que bastam um cabo e um soldado para se fechar o Supremo.
Às vésperas do impeachment, um senador da República confessou um grande pacto nacional, com o Supremo com tudo.
O sistema de justiça, historicamente aliado da Casa Grande, mesmo atacado pelas elites e pela extrema-direita, não mediu esforços para, além de se afastar dos princípios constitucionais, atuar contra as esquerdas e os setores democráticos e progressistas.  Para tanto, uma justiça de exceção começou a agir e, em nome do combate à corrupção, a proteger, paradoxalmente, numerosos corruptos.
As esquerdas, acuadas e feridas (em parte porque se aliaram com segmentos de elite e desviaram dos anseios populares), voltaram a apostar na institucionalidade e em eleições limpas para a reconquista do poder.
Como se vê, o jogo sujo que há muito estrutura as instituições republicanas e o processo eleitoral enlameado pela corrupção e a violência estão às claras nessas eleições.
Este é um retrato-síntese da disputa eleitoral deste ano e, principalmente, neste segundo turno.
Fica cada vez mais patente que, nessas condições totalmente assimétricas e a depender dos resultados do próximo dia 28 de outubro, o pleito de 2018, caracterizado por disputas viciadas e desproporcionais, aprofundará ainda mais o processo de ruptura institucional e da democracia, lançando o país num abismo dantesco.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Pela vida e pela democracia, busquemos os ausentes!


Cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram de comparecer às urnas no primeiro turno. São cidadãos desiludidos com a política tradicional; contaminados pela criminalização à política; desesperançados em relação ao poder público;  magoados com expectativas frustradas de melhoria de vida; afogados em dívidas;  maltratados pelo desemprego...

São pessoas que perderam a esperança na (seletiva) justiça e que repudiam as instituições democráticas porque não as vê como legítimas para atender aos interesses populares e incapazes de debelar a gravíssima crise ética, econômica e social que consome a vida da maioria dos brasileiros.

Algumas dessas pessoas estão totalmente desinformadas do abismo que se avizinha. Ficaram ausentes da disputa política no primeiro turno das eleições e não percebem que a eventual eleição, em segundo turno, de um candidato fantoche dos ricos e poderosos, serviçal da elite mais predatória do planeta; enfim, sem nenhum compromisso com a democracia, a liberdade, a justiça e a paz será o pior de todos os males e agravará, ainda mais, a violência estrutural que sustenta a nossa sociedade.

Aliás, a violência estrutural (e sua banalização e naturalização em nosso país) é um terreno fértil para brotar o autoritarismo.

É preciso enfrentar esse fantasma que, sempre presente nas microrrelações sociais, de vez em quando sai do armário com uma potência destruidora.

Estamos no meio de uma batalha entre eros (amor, potência criadora) e thanatos (morte, violência, destruição). 

Amor e ódio, sexualidade e agressividade, vida e morte, são forças que habitam o ser humano e estão presentes no cotidiano, tanto nos conflitos mais banais quanto nas mais mórbidas disputas da humanidade. Esses opostos estão misturados, amalgamados em tudo que o fazemos, pensamos e sentimos.

Nessas eleições, há pulsões pela vida e há pulsões pela morte.

As cenas de barbárie e violência protagonizadas país afora por brucutus contra militantes sociais, nos últimos dias, mostram que a pulsão pela morte espraia-se pelo país.

Porém, se trabalharmos para fortalecer eros, enfrentaremos, individual e coletivamente, a pulsão de morte e poderemos canalizar parte dessa agressividade difusa para ser utilizada em prol da vida, da justiça, da democracia.

É preciso enfrentar esse “demônio oculto” do ódio, da vingança e da violência. E o discurso do antipetismo não pode ser a desculpa para se permitir a barbárie.

As narrativas da isenção, dos que se denominam justos e bons e se omitem,  lavando as mãos, devem ser questionadas. 

Não permitamos que pouco mais de 50 milhões de eleitores contaminados pela pulsão da morte, pelo ódio, pela brutalidade da violência sociopata, pelo desejo da vingança, pelo moralismo hipócrita e pelo fanatismo religioso definam a vida de 200 milhões de brasileiros.

O momento é de união, com pulsão de amor, pela vida, envolvendo todos os setores democráticos: liberais, progressistas, esquerdas, movimentos sociais e eclesiais...

Haddad, neste momento histórico, não é o candidato do PT. É o candidato que representa a possibilidade concreta para o início da retomada da democracia.

Assim, é preciso trazer aqueles que estão ausentes da participação política e eleitoral às urnas. Um trabalho de micropolítica que pode ser realizado por cada um, cada uma, no âmbito doméstico, no trabalho, no ônibus, nas redes sociais. 

À luta!