sábado, 16 de dezembro de 2017

Memória, verdade, justiça: passado, presente e futuro

Entrega do relatório da Comissão da Verdade em Minas - Foto: Celso Travassos/COVEMG

Para nós que compomos a Comissão da Verdade em Minas, esta cerimônia de entrega oficial do relatório final para os chefes dos três poderes do Estado, depois da realização de uma audiência pública na Assembleia Legislativa, quando entregamos o relatório à sociedade mineira, é revestida de grande significado.

Apesar de não ter caráter laudatório, é preciso registrar, rapidamente, um pouco da história da Comissão e alguns agradecimentos.

Cumprindo a determinação legal e o compromisso assumido com as mineiras e os mineiros, depois de mais de quatro anos de trabalho ininterrupto, a Comissão da Verdade em Minas Gerais presta contas dos resultados de suas pesquisas, neste documento final.

Desde sua instalação, a Covemg não mediu esforços para, cumprindo seus objetivos políticos, legais e institucionais, restaurar a verdade dos fatos relativos aos tempos tenebrosos do período ditatorial em Minas Gerais. Para tanto, trabalhou arduamente ouvindo, pesquisando, reunindo provas e documentos e interagindo com cidadãos e grupos sociais que foram silenciados, alguns exterminados, na época do arbítrio. Fez audiências públicas, ouviu centenas de pessoas, visitou locais de tortura, promoveu centenas de reuniões e produziu outras centenas de documentos e registros sobre o período do arbítrio.

É preciso registrar que nosso trabalho não é conclusivo. E que eventuais ajustes podem e devem advir, tendo em vista a amplitude e complexidade do desafio que nos foi proposto. Porém, tudo o que foi feito baseou-se na máxima responsabilidade, seriedade e no compromisso com a democracia, a verdade e a justiça de toda a nossa equipe.

Além desse relatório, um amplo banco de dados está em fase final de organização e será disponibilizado num portal na Internet para o público e pesquisadores. Essa base de dados possibilitará a continuidade de pesquisas e investigações e a produção de novas informações sobre as graves violações aos direitos humanos em Minas e no país no período compreendido entre 1946 e 1988.

Outro resultado dos esforços da Covemg é realização de uma série de vídeos institucionais e educativos, a serem disponibilizados à sociedade em breve.

Gostaria neste momento, em primeiro lugar registrar um agradecimento todo especial aos membros da Comissão que não mediram esforços, sacrifícios e todo o empenho na coordenação de todo o trabalho da Covemg.

Trabalhar na liderança desse grupo, nesse último ano, foi um enorme aprendizado e a sensação de que estamos do lado certo da história.

Meu abraço terno, reconhecido e agradecido ao médico CARLOS MELGAÇO VALADARES, preso e torturado no período entre 1969 a 1971; à psicóloga EMELY VIEIRA SALAZAR, presa e torturada no período entre 1970 e 1971; ao meu adjunto, o jornalista JURANDIR PERSICHINI CUNHA, às professoras MARIA CELINA PINTO ALBANO e MARIA CERES PIMENTA SPÍNOLA CASTRO, ambas ex-coordenadoras da Comissão, e ao advogado PAULO AFONSO MOREIRA.


Membros da Comissão da Verdade em Minas Gerais - Foto: Celso Travassos/COVEMG


Em nome desses membros da Comissão devo fazer outro agradecimento público e especial: a todas as pessoas e instituições que colaboraram conosco nessa empreitada. Não ousarei citar nomes, porque são tantas e tão preciosas as contribuições que certamente poderei ser traído pelo esquecimento e deixar de citar alguém.

Mas, é preciso registrar, muito especialmente, nosso agradecimento a uma maravilhosa equipe composta por mais de 100 pessoas, em sua maioria por voluntários, que não mediu esforços para produzir a mais ampla pesquisa documental, histórica e política sobre as graves violações aos direitos humanos em nosso Estado, principalmente durante a ditadura militar. Uma equipe que se envolveu e ainda se envolve plena e responsavelmente neste trabalho. A vocês, queridas e queridos colegas, nosso agradecimento emocionado.

Como se sabe, apesar de vozes antidemocráticas ainda hoje negarem, com o golpe militar de 1964 instalou-se um regime de exceção, violência e arbítrio em nosso país: um governo de decretos e atos institucionais autoritários; políticos eleitos democraticamente foram cassados; as eleições eram controladas e figuras esdrúxulas, como governadores e senadores biônicos, foram criadas.

Lançamento do relatório na ALMG. Foto: ALMG


Para se manter no poder, os generais calaram os meios de comunicação impondo censura e ameaças; houve forte repressão aos movimentos sociais e populares, no campo e na cidade; a utilização da tortura transformou-se em política de estado; ocorreram diversos desaparecimentos forçados, exílios e incontáveis violações dos direitos humanos.

É nesse cenário que a Covemg procurou atuar, com vistas a esclarecer a verdade, reescrevendo a história a partir da versão dos perseguidos, dos silenciados e dos excluídos daquele período.

O regime de exceção, além de ter massacrado centenas de militantes de movimentos sociais e estudantis, partidos políticos e sindicatos de trabalhadores nas cidades, também atingiu, em Minas, grupos sociais mais amplos, como trabalhadores rurais, urbanos e indígenas, que padeceram todo o tipo de perseguição e sevícias. Esse relatório traz pesquisas inéditas nessas e noutras temáticas.

Para além dos atores conhecidos que promoveram a repressão durante a ditadura, notadamente as Forças Armadas e as polícias estaduais, a Covemg demonstra em seu relatório que outros personagens foram ativos na repressão durante o período de arbítrio.

Pela ação, conivência, parceria e omissão às graves violações de direitos identificamos - além dos agentes e órgãos públicos de diversos setores dos três poderes do Estado - outras associações, empresas e instituições privadas (do agronegócio, da mineração, dos setores da metalurgia, siderurgia, construção e automobilístico, dentre outros) que atuaram em parceria com o regime ditatorial.

Conhecer essa complexa rede de agentes e instituições públicos e agentes e instituições privados que foram partícipes do regime ditatorial é um elemento importante para o desvelamento das armadilhas do passado de tão triste memória. E é luz para entendermos as imensas violências, injustiças e desigualdades que ainda vicejam em nosso país nos dias atuais.

Por isso, nosso trabalho não é somente a mirar o passado...

A falta de punição aos perpetradores da tortura, das graves violações aos direitos humanos e do arbítrio fez com que essas práticas se institucionalizassem em muitos setores, transformando-se em políticas de Estado que ainda persistem no presente.

Desgraçadamente, em muitas delegacias, batalhões, centros de internação de adolescentes, em abordagens policiais, na ação seletiva da justiça e, principalmente, nas prisões a prática da violência institucional do Estado, atentando contra princípios elementares dos direitos humanos, ainda prossegue.

Mudaram as vítimas: antes, militantes políticos que lutavam pela democracia; hoje, pobres, negros, moradores de rua e das periferias; a comunidade LGBT; um sem-número de jovens, homens e mulheres que, sem acesso à Justiça e limitados em seus direitos de cidadania por terríveis mecanismos de exclusão social, ainda são vítimas de todo o tipo de arbitrariedade cometida por agentes públicos e privados.

Seria hipocrisia da nossa parte não tratar, neste contexto e nesta solenidade, dos tempos sombrios que vivemos, quando vozes agourentas clamam pelo passado de arbítrio e exceção; quando um governo ilegítimo, contra o povo, a Nação e a democracia e a favor do sistema financeiro global assumiu o poder.

Num momento em que os três poderes da República se fundiram em um conglomerado a serviço do capital financeiro e outros grupos econômicos, sem consideração com Constituição, a lei, a soberania popular ou qualquer coisa que sustente o caráter republicano do nosso país. Esse conglomerado age de maneira unitária, embora com dissidências internas e contradições, e se constitui em um amálgama entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Trata-se de um tempo de exceção.

Presenciamos, inertes, o Estado brasileiro transformado num único corpo, que age sob o comando direto e exclusivo de banqueiros, especuladores e empresas nacionais e transnacionais, sem prestar contas a qualquer princípio republicano ou democrático. O controle do poder, nem de longe, é do povo e sequer desses que se auto-intitulam políticos.

O cinismo e a falta de escrúpulos desse conglomerado que governa atualmente convivem, lamentavelmente, com a passividade e a idiotia coletiva de uma sociedade anestesiada por uma mídia empresarial venal e antidemocrática não comprometida nem com a nossa história, muito menos com a verdade.

Tudo muito parecido com o período de exceção do regime militar. Os tanques de outrora foram substituídos por outras armas, aparentemente menos letais. Os mecanismos de controle, opressão e exclusão também são mais sofisticados. Tudo a dar uma falsa aparência de normalidade e legalidade.

Não é por acaso que, nesse cenário, como nos tempos medonhos da ditadura, os discursos da violência e do ódio prevalecem em amplos segmentos sociais, principalmente em setores conservadores da classe média e na mídia.

O ataque ocorrido à UFMG, na semana passada, os ataques às artes e às expressões da cultura são outras formas a evidenciarem que o autoritarismo se arvora contra as regras mais basilares da democracia. A Covemg foi a primeira instituição a manifestar publicamente seu repúdio à violência da operação policial na UFMG, respaldada numa determinação judicial fragrantemente desproporcional e autoritária. Não podemos nos calar!

Por isso, é tão importante todos os esforços para se rememorar as lutas e os ideais democráticos daqueles que tombaram e dos que foram violentados lutando pelas liberdades democráticas em passado tão próximo. E não podemos nos silenciar e nos acomodar no presente!

Enquanto o Estado brasileiro não dizimar, de vez, qualquer tipo de afronta à dignidade humana praticada por agente público; enquanto os poderes públicos não implantarem mecanismos institucionais de prevenção e combate às violações de direitos praticadas por agentes públicos e também pelo setor privado não podemos dizer que somos um país democrático.

Com os resultados dos trabalhos da Covemg espera-se, firmemente, que o poder público em Minas Gerais tome as providências legais e cabíveis para que as arbitrariedades do passado sejam extirpadas das práticas dos agentes públicos no presente; que os devidos reconhecimentos às vítimas sejam processados com a finalidade da prática da justiça e que políticas públicas de prevenção à violência institucional sejam implementadas nas agências governamentais, em vários níveis.

Nas várias recomendações que o relatório final da Covemg apresenta estão o cerne do nosso trabalho. São recomendações dirigidas principalmente aos três poderes do Estado de Minas. Sua recepção e implementação pelos três poderes não é deferência ao trabalho dessa Comissão. A implementação das recomendações será sinal de respeito e compromisso dos poderes públicos do nosso Estado com todos os mineiros e as mineiras. Demonstrará em que medida os poderes do Estado estão comprometidos, para além dos discursos, com os princípios democráticos e os fundamentos da Constituição da República, entre eles a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político.

É a partir de hoje que veremos se nosso trabalho, árduo, sério, responsável, apesar de incompleto, será de fato absorvido pelo Estado.

Não obstante, a reconstrução da memória e a busca da verdade com vistas à efetividade da justiça, escopos deste nosso trabalho, estão entregues aos mineiros e às mineiras.

Muito obrigado!



(DISCURSO DE ENTREGA RELATÓRIO FINAL DA COVEMG, no Palácio da Liberdade, em 13/12/2017).

A comissão, formada para apurar denúncias de violação dos direitos humanos em Minas Gerais, entre 1946 a 1988, especialmente durante a ditadura militar, identificou 1.531 presos políticos e 125 torturadores, cujos nomes foram apontados no relatório, que tem 1.781 páginas e é considerado o maior estudo já feito no Estado sobre o assunto. O relatório completo pode ser acessado em:  www.comissaodaverdade.mg.gov.br

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Direitos Humanos e discursos de ódio

Os direitos humanos são todos os direitos e direitos de todos. Já numa sociedade de consumo, o individualismo exacerbado inclui poucos.
A unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores.


A unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. (Reprodução/ Pixabay)
Por Robson Sávio Reis Souza*
Em 10 de dezembro recordamos a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se há algo que comemorar – a humanidade incorporou em boa medida os pressupostos defendidos no documento da ONU de 1948 –, ainda resta um longo caminho a ser percorrido pela efetividade da cidadania em nosso país. Afinal, os direitos humanos são todos os direitos (civis, políticos, culturais, econômicos, sociais...) e são direitos de todos (independentemente da origem étnica, da condição econômica, da orientação sexual e das preferências políticas, religiosas e ideológicas...
    No plano internacional observamos que o capital cada vez mais impera absoluto; a economia se sobrepõe à política e os direitos sociais são drasticamente reduzidos. Numa sociedade de consumo, o individualismo exacerbado inclui poucos. A imensa maioria, os pobres e despossuídos de direitos – também chamados de consumidores falhos – encontra-se em variadas situações de exclusão. E nesse contexto podemos afirmar: para a realização plena dos direitos humanos a intervenção do Estado – para diminuir as perversidades do capitalismo – é crucial.
    No Brasil – um país historicamente marcado pela violência estrutural e pela justiça seletiva, cuja cultura dominante e elitista naturaliza as desigualdades étnico-raciais e socioeconômicas (produtoras de múltiplas exclusões e de várias formas de preconceito e discriminações) – o debate acerca da efetividade dos direitos humanos deixou de ser uma agenda civilizatória e transformou-se numa plataforma criminalizada vigorosamente por segmentos conservadoras, elitistas e antidemocráticos.
    Ademais, a mídia empresarial, que vocaliza as demandas das elites nacionais, é pródiga na exaltação e propagação das múltiplas formas de violências, a amplificar discursos de ódio e a desdenhar os princípios basilares do estado democrático de direito, assentados no documento da ONU de 1948.
    Nos últimos tempos, tempos tenebrosos advindos com um golpe arquitetado pelos segmentos mais conservadores, retrógrados e violentos da sociedade, observamos uma crescente criminalização dos discursos em defesa dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que discursos de ódio povoam o debate político, social, religioso e nas redes sociais.
    Tais discursos sombrios tentam consolidar uma narrativa única e catastrófica, criminalizando todas as diferenças sociais, políticas, étnicas, de gênero; semeando desesperança e povoando o imaginário social de medo, aversão e apreensão em relação aos outros, ao diferente, ao presente e futuro.
    O filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek nos ajuda a entender essa narrativa autoritária: a unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. Essa estratégia justificou o nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...) e o golpe civil-militar de 1964 (medo do comunismo), por exemplo. Em certa medida, esses mesmos discursos estão muito salientes no momento sinistro que vivemos, quando a Nação é comandada por um grupo de desqualificados (nos três poderes) que não respeitam o povo, nem os seus direitos duramente conquistados nos últimos tempos.
    A soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário social) é o ambiente propício para se criar um clima de pânico, instalar a desconfiança generalizada, propagandear uma insatisfação irracional, criminalizar os direitos humanos. A partir daí, pode-se construir os pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o injustificável; elegem-se bodes expiatórios lançando-os à fogueira da condenação midiática. E os direitos humanos deixam de ser a bússola que norteia os ideais políticos e sociais.
    A estratégia discursiva para unificar todos os "nossos medos" produz uma aceitação aos discursos de ódio, de violência, da eliminação de tudo o que é diferente de um padrão imposto pelos poderosos.
    E a religião não está fora desse contexto. Não há nada mais perverso, doentio e perigoso que a mistura entre o radicalismo político e o fundamentalismo religioso. O fanático político-religioso não tem limites; não tem ética; não age com a razão. Age por convicção, ou seja, pela crença pervertida que é um porta-voz do bem ou um discípulo de uma causa transcendental. Está convicto que tem uma missão a ser cumprida e sendo superior, porque é um enviado de Deus para extirpar o mal da terra, deve salvar o mundo daqueles "eleitos" como sendo os ímpios.
    Os fanáticos político-religiosos se congregam em castas herméticas cujo objetivo é criar mecanismos de autoproteção. Só assim se sentem seguros e empoderados para cumprir sua missão redentora. Estão convictos: somos do bem; podemos tudo!
    É por isso que o fanático político-religioso tem na pregação e na oratória suas principais armas para arrebanhar adeptos. Utiliza-se da propagação do medo para justificar a consolidação de uma seita baseada em discursos de ódio e de vingança. Por mais paradoxal que possa parecer, há muito discurso religioso criminalizando os direitos humanos.
    Outra forma para desconstruir e deslegitimar o discurso dos direitos humanos está consolidada no adensamento do estado penal em nosso país. O direito penal seletivamente aplicado para resolver todos os problemas e mazelas sociais e políticos é uma forma de consolidação das desigualdades e das múltiplas injustiças.
    Lamentavelmente, o reducionismo judicial, transformado em ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora. Esse pensamento espraia-se nas redes sociais, contaminando-as de ódio e caça às bruxas.
    Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, convicção, chantagem e difusão do medo e do ódio, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e reputações e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário que despreza a doutrina dos direitos humanos.
     Como diz o poeta, “se muito já foi feito, há muito que se fazer”. Que nesse 10 de dezembro cada cidadão – que tem na democracia, na justiça, na liberdade e na igualdade os referenciais éticos para sua vida – sinta-se responsável na luta pela efetividade dos direitos humanos em nosso país, principalmente nesses tempos sombrios e temerosos.
    Robson Sávio Reis Souza é coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) e da Comissão da Verdade em Minas Gerais; membro do Fórum Mineiro de Direitos Humanos.
    Artigo publicado originalmente no Portal Dom Total, em 08/12/2017.

    sábado, 2 de dezembro de 2017

    O que esconde o discurso sobre corrupção?


    Foto: Internet

    Nas rodas de conversa, na mídia empresarial e nas redes sociais há um retumbante discurso sobre a corrupção no Brasil. Até parece que aqui só há corruptos. E que os corruptos daqui estão somente na política.

    Num artigo anterior (aqui) demonstrávamos que o capitalismo no seu formato de rentismo, na atualidade, funciona graças à corrupção generalizada: nada menos de 25% do PIB mundial são remetidos a paraísos fiscais por grandes empresas e instituições financeiras.  Estima-se que a cada ano 18 trilhões de dólares seguem o caminho da sonegação de impostos. No Brasil, a estimativa de evasão fiscal entre 2003 e 2012 foi de 220 bilhões de dólares. Os conglomerados financeiros, via corrupção, controlam os governos, a economia, as políticas e as agências multilaterais. 

    Os midiotas, aqueles que odeiam a política e se deixam envenenar pela mídia e pelos setores mais retrógrados – umbilicalmente parceiros da corrupção estrutural que viceja em nosso país -, são os maiores falastrões sobre corrupção. O grupo político que mais bradou contra a corrupção no Brasil, ao som de panelas, hino nacional e camisetas da CBF (uma entidade virginal, como se sabe) assumiu o poder através de um golpe e, desde então, dia após dia, é desmascarado com práticas vergonhosas de corrupção.

    Poucas são as propostas objetivas para se combater a corrupção nos poderes públicos e nas empresas, bancos e sistema financeiro global. E muita hipocrisia e cinismo retumba nesse falatório sem sentido sobre corrupção.

    Será que a corrupção está somente na política institucional?

    Vejamos: o cidadão que sonega imposto, fura fila e não respeita o direito alheio é corrupto.
    O empresário da indústria e do comércio que vive criticando a carga tributária e é responsável por uma sonegação fiscal anual na casa de 100 bilhões de reais, é corrupto.

    Os líderes religiosos que fazem pregações inflamadas contra a corrupção e não prestam contas do dízimo que arrecadam não seriam também corruptos?

    A classe média que vive reclamando do estado e é composta majoritariamente por profissionais liberais também está cheia de corruptos. Certamente, você conhece advogados, médicos, odontólogos, veterinários, engenheiros, professores e outros profissionais que prestam serviços e não emitem notas fiscais e adoram burlar o fisco. São corruptos.

    Há uma corrupção violenta fruto de um sistema econômico perverso: bancos que cobram taxas de juros como no Brasil estão no topo de uma corrupção legalizada. E empresários que exploram o trabalhador também são corruptos.

    Quando o sistema econômico se sobrepõe aos poderes públicos é sinal de corrupção institucional e generalizada. Esse é o caso do Brasil, onde uma horda de corruptos, à serviço do capital, está no poder.

    Um sistema de justiça seletivo e não isonômico é azeite à máquina da corrupção.

    Para se combater a corrupção os discursos de nada valem. Mecanismos institucionais de controle público e privado, uma cultura cidadã e democrática, justiça isonômica e igualdade de direitos são os melhores remédios.

    A Dinamarca, por exemplo, é um dos países menos corruptos do mundo. Sabe porquê? Porque lá os cidadãos, os políticos e os empresários são honestos. No supermercado o controle é eletrônico e as pessoas pagam os produtos sem precisar de policiamento. Os empresários não sonegam impostos, nem têm lucros exorbitantes, pois quem paga por produtos e serviços é responsável pela fiscalização. Os bancos são, razoavelmente, controlados e não praticam taxas de juros que são verdadeiros assaltos à mão desarmada.

    E os políticos? Um deputado federal de lá, por exemplo, ganha o equivalente a 23 mil reais e um pedreiro 18 mil reais. Ambos, deputados e pedreiros têm os filhos na mesma escola pública, são internados no mesmo hospital público e recebem a aposentadoria pública.

    Com pouca desigualdade e bons salários para todos, o pedreiro, o parlamentar e o empresário vivem "num mesmo mundo": usam transporte público e são tratados com os mesmos direitos e deveres por uma justiça cujos juízes e promotores têm o mesmo padrão de vida dos demais cidadãos.


    sábado, 18 de novembro de 2017

    Le Monde e a bofetada na mídia tupiniquim



    Em mais um nocaute na mídia empresarial nativa - que optou pelo discurso único, partidário, odioso e que beira o fascismo -, o jornal Le Monde provou que há uma imprensa democrática, que respeita e valoriza a pluralidade de ideias, opiniões e projetos políticos.

    Na sua edição eletrônica, o jornal publicou uma entrevista com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacando na manchete a voz do entrevistado (“Lula diz que está pronto para assumir o poder em 2018”) e não a visão sempre enviesada da mídia tupiniquim que insiste em transformar a opinião publicada em opinião pública, elegendo seletivamente os bodes expiatórios e protegendo a gangue golpista que tomou de assalto o poder em 2016, “com o Supremo, com tudo”.

    Aliás, nessa democracia de faz-de-conta à brasileira, de forma ridícula, é a mídia empresarial que tem determinado a pauta da política nacional nos três poderes. Como já escrevemos aqui, o que a mídia publica no final de semana transforma-se automaticamente na agenda institucional dos podres poderes dessa republiqueta. E que se dane o povo e as regras mais basilares até mesmo da democracia procedimental. Nessa ordem, hoje no Brasil há de fato três poderes: o poder do dinheiro, o poder da mídia e o poder dos golpistas.

    Chama-me atenção não somente o texto honesto, sem adjetivos, publicado pelo Le Monde mas, principalmente, a foto selecionada para ilustrar a matéria (imagem ao lado). Ao invés dos estereótipos depreciadores, violentos e despudorados da imagem do ex-presidente publicados em doses cavalares pelos veículos da mídia nacional, o jornal francês estampou uma fotografia de um líder político descontraído e elegante. Certamente, o periódico francês não segue a cartilha de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda de Hitler, que transformou valores culturais e políticos dos alemães em poções de ódio a alimentarem o mais perverso regime político da história  do Ocidente. E todos conhecem o fim dessa história. Não é por coincidência que alguns discursos de fascistas retumbam atualmente na mídia tupiniquim.

    Enquanto isso, o monumental escândalo de corrupção no futebol internacional, encabeçado pelas organizações globo, é solenemente desprezado pela emissora dos Marinhos e pelos seus parças da mídia nacional. Quanta hipocrisia!

    Não é preciso ser eleitor, simpatizante ou militante do PT e de Lula para reconhecer as qualidades do ex-presidente, sua importância para a história política nacional, sua imensa base eleitoral popular (que merece respeito) e seu legítimo interesse em participar e disputar o poder. Basta ser honesto e democrático.

    Honestidade e espírito democrático: duas virtudes pouco cultivadas pela mídia e por parte da justiça brasileira, lamentavelmente. 

    segunda-feira, 30 de outubro de 2017

    A farsa democrática brasileira e o golpe



    Na edição de 2017 do Latinobarômetro, apenas 13% dos brasileiros consultados se declararam satisfeitos com o funcionamento da democracia, último posto num ranking com 18 países. Apenas 1% dos brasileiros acha que o país vive uma "democracia plena" e 97% avaliam que o governo trabalha apenas para atender os interesses de "grupos poderosos".

                Se você acredita em democracia no Brasil é melhor não ler as linhas seguintes. Você verá uma “imagem nua” que poderá macular sua sensibilidade adestrada...

    Desde sua origem, na Grécia antiga, a democracia é um sistema de hierarquização do poder arquitetado por atores políticos que têm interesses de classe por esse modelo de governança. (O conceito de classe é aqui utilizado para designar os diferentes grupos sociais, com distintos recursos de acesso ao poder, que compõem uma sociedade).

    Como sabemos, nos seus primórdios, há cerca de 2.500 anos, estavam excluídos dos processos decisórios as mulheres, os jovens, os estrangeiros e os escravos. Ou seja, na democracia, cuja palavra significa “governo do povo”, somente os homens livres deliberavam sobre os rumos da polis (cidade). O demos (povo) se restringia, portanto, a alguns; não a todos.

    A história, contada desde então, esconde o fato de que a democracia grega funcionou porque a classe antagônica estava excluída do processo deliberativo: os escravos não poderiam, jamais, participar das decisões dos homens livres. Em outras palavras, a democracia se edificou numa ordem social escravagista. Se os escravos fossem incluídos à participação no processo decisório, certamente toda a ordem socioeconômica à época seria implodida, a ocasionar uma divisão estrutural daquela sociedade. E isso é celebrado como algo “natural”.

    Ora, se os escravos pudessem decidir nas mesmas condições que os homens livres as leis seriam alteradas e eles, os escravos, acabariam com a servidão. Resumindo: já no seu nascedouro, a democracia grega apontava que interesses em contradição são inconciliáveis e, para o funcionamento desse sistema, alguns sempre dominarão outros.

    Vamos entender, então, porque a decantada ideologia segundo a qual a democracia é um governo do povo é, na verdade, um exercício retórico. Afinal, os detentores do poder, em cada época histórica, se servem desse subterfúgio, uma narrativa muito bem construída, para convencer os cidadãos que os governos democráticos são governos populares e que atendem aos interesses das maiorias.

    A partir do século XVI, a experiência democrática grega é retomada com a criação dos chamados estados-nação. E, gradualmente, com a chegada dos burgueses ao centro do poder, foi-se consolidando no ocidente outra ideia segundo a qual democracia e capitalismo são sinônimos.

    Assim, nas democracias contemporâneas os homens (brancos), detentores do capital, os chamados burgueses, assumiram o controle do poder. E, como ocorreu na Grécia antiga, para que o sistema democrático funcionasse nesse novo contexto histórico, era preciso que a classe antagônica, portanto, os operários, a maioria da população, fosse excluída dos processos decisórios.

    Essa exclusão se concretiza utilizando-se de várias estratégias. Nas democracias representativas, por exemplo, os sistemas judiciário e eleitoral são montados para passar a impressão que há isonomia na competição eleitoral e no acesso ao poder. Na verdade, há mecanismos (legislação político-eleitoral, por exemplo) que impedem a participação efetiva da maioria da população na disputa isonômica do poder e limita o acesso popular nos processos decisórios.

    Com a “doutrinação midiática”, os eleitores pensam que estão elegendo representantes. Na verdade, elegem, majoritariamente, os donos do capital ou os seus prepostos e as elites partidárias que colonizam a maioria dos partidos, inclusas as agremiações autodenominadas de “esquerdas”.

    A ideia de eleições livres, diretas e regulares esconde, sorrateiramente, uma série de regras procedimentais que impedem a representação efetiva da maioria da população. É só verificarmos o perfil socioeconômico dos representantes eleitos nas câmaras de vereadores, assembleias e no congresso nacional. Constataremos, cabalmente, que a maioria esmagadora da população não está representada (de fato) nas casas legislativas, apesar das regras procedimentais da democracia (eleições livres, diretas e regulares; mídia livre, etc.) funcionarem perfeitamente. O mesmo se dá em relação ao executivo: os donos do dinheiro e as elites partidárias sempre se beneficiam das regras eleitorais e da ação direta do sistema de justiça para dominarem esse poder.

    Por óbvio, se a democracia fosse realmente levada às últimas consequências, os trabalhadores, que são a maioria, teriam o mesmo poder dos burgueses.  E, sendo maioria, os operários definiriam os rumos da sociedade.

    Na verdade, há muitas aristocracias (governos constituídos por aqueles considerados como os melhores ou os mais capazes) e plutocracias (governos dos ricos; ou seja, daqueles que usam do poder econômico para acessar o poder estatal).

    No caso do Brasil atual temos uma cleptocracia: um governo de ladrões, criminosos, perpetradores de fraudes, operadores da corrupção em concorrências e licitações públicas e até líderes do tráfico de drogas que ocupam os poderes dessa pseudo-república e assumiram o controle do governo através de um golpe parlamentar-judiciário-midiático-empresarial-elitista. E às favas o povo...

    Outra forma de domínio das democracias pelas elites se dá através da burocracia. No sistema democrático, os representantes eleitos (membros das elites econômicas, políticas, intelectuais, religiosas) controlam a aprovação de leis de interesse dessas minorias; administram a justiça favorecendo sempre essas classes e manipulam a chamada opinião pública através de ideologias arquitetadas pelos seus parceiros nos meios de comunicação de massa. E, hipocritamente, dizem que ideologias são coisas de “esquerdopatas”.

    Outro exemplo de manipulação falaciosa do conceito de democracia se dá através da ciência. Para substituir deus, origem do poder até a idade moderna, o positivismo e as ciências sociais trataram de consolidar a ideia segundo a qual o conhecimento tem a última palavra em relação aos conflitos e dilemas sociais e políticos. A deusa, agora, é a ciência.

    Você já reparou que sempre um especialista é chamado a pontificar sobre os problemas sociais, políticos e econômicos, dando a “última palavra”? Você percebe que esse especialista ou cientista é sempre um cidadão da classe média ou um preposto das classes dominantes? (É só ligar a Globonews ou ler os jornalões brasileiros e você perceberá que o cientista sempre dá a receita em nome da sociedade e essa receita, invariavelmente, é para a manutenção do status quo).

    Não é à toa que a colonização da academia é um dos mais cuidadosos meios para a manutenção do establishment. Você pode até conhecer um cientista que destoa do pensamento hegemônico, mas observe: para que ele participe da mídia é preciso ser um dissidente dócil. Caso contrário, entra para o index da mídia empresarial.

    Aliás, a ideia de democracia capitalista se transformou num dogma, a confirmar que devemos ter fé nessa narrativa. E, ai daqueles que questionam a democracia...

    Chega a ser ridículo ler artigos de renomados cientistas sociais e políticos, economistas, historiadores, filósofos a defenderem a democracia procedimental brasileira. Certamente, não vivem o dilema da fome, do desemprego e das condições análogas à escravidão que fazem parte do cotidiano de 70% dos brasileiros. E acham que é “natural” uma democracia nesses moldes. São os colonizados de uma ciência serviçal do sistema capitalista.

    Quer conhecer como a maioria dos cientistas brasileiros (de renome) são colonizados? É só pesquisar sobre as bolsas de financiamento da pós-graduação no exterior, os congressos e eventos científicos internacionais e as parcerias institucionais das nossas universidades e centros de pesquisas financiadas por fundações e think tanks norte-americanos. Você perceberá porque a ciência brasileira, no geral, é voltada para o sucesso individual e o servilismo ao capitalismo.

    Concluímos, até aqui, que a democracia é uma narrativa que atende a certos interesses. Um conceito (teórico) muito bem arquitetado e consolidado que não se concretiza no mundo real; afinal, não há experiência concreta de “governo do povo”.

    Temos que admitir, não obstante, que os regimes democráticos realizaram importantes avanços sociais no século XX, principalmente após a segunda guerra mundial. Através de pactos entre elites ou na adequação das demandas das esquerdas socialistas aos modelos democráticos capitalistas, tais regimes melhoraram (e muito) a vida dos trabalhadores em diversos países. Noutros, as migalhas concedidas aos trabalhadores foram abundantes, passando a impressão que o povo, ou seja, a maioria dos trabalhadores, decidia os rumos de suas vidas.

    Ademais, a decadência de outros modelos de governança consolidou a crença na eficácia inquestionável das democracias capitalistas. Experiências de governos socialistas perderam a batalha (da disputa acerca do melhor modelo de governança) na mídia empresarial, principal front de manutenção dos governos democrático-capitalistas na atualidade.

    No Brasil, nunca tivemos uma democracia real. Historicamente, as elites nacionais sempre se apropriaram do erário e do estado para se locupletarem e ampliarem seus negócios e domínios, oferecendo sobejos ao povo. Em alguns raríssimos momentos, houve pífia expansão do estado social, não alterando substantivamente uma ordem social excludente, injusta, perversa e violenta.

    Não experimentamos, ao longo do século XX, o “século dos direitos” (Bobbio), mudanças estruturais na nossa sociedade. A Constituição Federal de 1988, tardiamente, propiciou alguns parcos avanços sociais à maioria dos brasileiros. Governos mais sensíveis aos trabalhadores, como nas gestões do PT, colocaram o estado um pouquinho mais à serviço dos setores historicamente excluídos e marginalizados.

    Mas, veio o golpe. E os neocoronéis, filhos dos eternos saqueadores do erário e das riquezas nacionais, tomaram novamente de assalto o poder. E, como uma horda de bárbaros sem temor e pudor, respaldados pela velha justiça da Casa Grande e vitaminados pela mídia empresarial e pela classe média dos privilegiados lançaram o país de volta ao passado.

    Não à toa, os golpistas recorreram ao lema da velha república (criada num golpe por latifundiários, maçons, militares e positivistas), “ordem e progresso”, para caracterizar um governo que, entre inúmeros retrocessos históricos, sociais e políticos não tem um pingo de vergonha em legalizar o trabalho análogo à escravidão e anistiar os latifundiários, os banqueiros e os grandes empresários – eternos larápios do patrimônio e das riquezas nacionais.

    O golpe confirmou a tese: a democracia capitalista brasileira só é boa enquanto uns poucos se locupletam do trabalho e da vida da maioria. E quando essas castas de privilegiados e perversos resolvem se unir para defenderem seus interesses a qualquer custo, nem mesmo as aparências (democráticas) são mantidas.

    No Brasil nunca tivemos um processo revolucionário de baixo para cima. As poucas tentativas de sublevação do andar de baixo foram violentamente sufocadas pelas elites no poder. Também nunca convivemos com uma guerra - que desperta solidariedade entre as classes. Talvez, por isso, os trabalhadores, maioria da população, sempre se contentaram com as migalhas. Os poucos avanços sociais só foram possíveis em governos que vigoraram através de pactos entre elites.

    Portanto, não há mudanças significativas à vista, pelo menos no curto prazo. Nas condições históricas atuais, não há espaço para processos revolucionários. O nível de controle social nunca foi tão sofisticado. O individualismo, exacerbado pelo capitalismo, destrói a solidariedade e produz seres humanos que se preocupam só com seus umbigos.

    Nesse contexto, defender essa democracia à brasileira e nos iludirmos na crença segundo a qual eleições regulares corrigirão as mazelas históricas dessa “coisa pública” que é (e sempre foi) de e para poucos é falácia.

    Como bons cristãos (de paletó), podemos acreditar que o lobo e o cordeiro viverão desinteressadamente e em paz nesses trópicos marcados pela pornográfica desigualdade e pela violência e justiça seletivas sob as bênçãos de Deus. Mas, isso é um “ato de fé”.

    Desgraçadamente, não há, até o momento, um programa de governo que trata de debater e pautar as reformas estruturais que conformam esse modelo vergonhoso de sociedade. E, sem reformas estruturais, teremos que nos conformar na defesa de uma democracia farsante, que nunca produzirá verdadeira equidade nessa banda dos trópicos. Continuaremos a viver no país mais desigual e violento do mundo.




    domingo, 1 de outubro de 2017

    Lula líder: breves notas sobre a pesquisa do Datafolha


    A pesquisa divulgada neste domingo, 01/10 (depois de um longo período no qual o Datafolha retirou-se estrategicamente do cenário eleitoral - e uma série de outras consultas, solenemente desdenhadas pela mídia-empresarial, apontavam o favoritismo de Lula), demonstram que o ex-presidente consolida seu favoritismo na disputa presidencial, não obstante a guerra travada contra ele pelos prepostos das elites nacionais; leia-se mídia e judiciário.


    No jornal impresso - dos que afirmaram que no Brasil houve uma "ditabranda" -, a manchete destaca: os votos em Lula resistem aos "escândalos e condenação". E, sintomaticamente, a manchete no UOL, do grupo Folha, logo "perdeu" destaque nas chamadas do portal na Internet. Como deve ser dolorido para os Frias, seus papagaios de pirata e seus amigos do conglomerado midiático-empresarial noticiarem esses dados! Parece que os Frias, assim como a Globo, insistem em achar que opinião publicada é opinião pública.

    Ao que tudo indica, a justiça agirá no tapetão a decidir o processo eleitoral no ano que vem (se acontecerem as eleições; tenho dúvidas!). Ou seja, o processo de centralidade e protagonismo do judiciário (que se iniciou com a politização da justiça, passando à judicialização da política e culminando na partidarização da justiça) muito provavelmente usurpará o poder popular, a demonstrar o desprezo das nossas instituições pelas regras até mesmo da democracia procedimental.

    Lula tem feito gestos a demonstrarem que pretende fazer um governo de coalizão, sem promover processos de ruptura. Não obstante, parece que não há mais espaço para uma concertação no Brasil. Desde o golpe, os segmentos de elite demonstram desdém à Constituição. Mais que isso, rasgaram os véus da hipocrisia (que mantinham certa estabilidade institucional), num país que tem 6 bilionários cuja riqueza é maior que 100 milhões de brasileiros e 5% dos mais ricos abocanham 95% de toda a riqueza nacional, conforme revelou a Oxfam, recentemente. As elites nacionais indicam que não estão dispostos a qualquer concessão, mesmo com evidências tão escandalosas.

    Falar em democracia no Brasil, principalmente após o golpe, é piada de salão. Como os dados acima denunciam, nunca tivemos de fato no país um governo do povo, apesar dos governos do PT terem atendido muitas expectativas populares. E isso não é pouca coisa...

    Historicamente, nossas elites se apropriaram do estado e nele se locupletam às custas do trabalho e da vida da imensa maioria do brasileiros. A propriedade da terra e a estruturação dos grandes empreendimentos industriais e bancários, por exemplo, se consolidaram no Brasil a partir do saque generalizado ao erário ou de políticas de isenção, refinanciamento e perdão de dívidas dos ricos, além da corrupção, é claro. Ou seja, a concentração patrimonial e de riqueza neste país se deu através da rapinagem do tesouro nacional e da ação inescrupulosas das elites que se apropriaram do estado para protegerem seus negócios privados.

    Depois do golpe, essas elites de mentalidade escravocrata, colonial e antinacional não querem permitir governos que possibilitem, sequer, algumas concessões ao andar de baixo.
    OU seja, parece que não há mais espaço, sequer, para as mudanças incrementais que foram sendo construídas a passos de tartaruga, com coalizões entre elites, desde a Constituição Federal de 1988.
    A sanha escravagista e autoritária das elites nacionais parece ter, definitivamente, saído do armário. Com o apoio da mídia, a turma da casa-grande capturou parte da classe média para promover a guerra de fake news a criminalizar a política, as esquerdas, Lula e o PT. Não resolveu.
    Mas, ao que tudo indica, com a adesão da justiça da casa-grande, conseguirá violentar o processo eleitoral, retirando do povo a decisão dos rumos da Nação.

    Os dados da pesquisa do Datafolha apontam: os cidadãos percebem que foram ludibriados pelo enredo do golpe; que o único líder político capaz de acolher demandas populares é Lula e que a justiça brasileira continua serviçal da casa-grande.

    É incrível a resiliência eleitoral de Lula que tem, também, sua rejeição diminuída (apesar de erros cometidos pelo PT).

    Os próximos capítulos dessa disputa perversa, que levou ao comando do país uma gangue sem pudor e temor, serão decisivos para os rumos da Nação. E, se não há espaço para negociação, o desfecho dessa trama poderá ser doloroso.

    Há quem aposte na paz eterna dos túmulos. Até quando?