sábado, 20 de janeiro de 2018

A justiça no banco dos réus



São muitos os cronistas e analistas políticos que têm afirmado: o julgamento de Lula, no TRF4, será, simbolicamente, o julgamento do poder judiciário brasileiro.

Os que conhecem nosso sistema de justiça, principalmente sua vertente criminal, sabem que o poder judiciário sempre foi serviçal dos poderosos e do capital. Segundo um estudo do eminente professor emérito da USP, Fábio Konder Comparato, sobre o judiciário brasileiro, “um poder submisso às elites, corrupto em sua essência e comprometido com a injustiça.” Leia aqui.

Historicamente, as vítimas desse sistema são os pobres, os negros, as minorias vulneráveis e os inimigos de ocasião. Os órgãos judiciários e policiais, sempre parceiros, são instrumentos de controle social e político, tudo devidamente regulado nos marcos do incensado estado democrático e de direito.

Desde a proclamação da república (um golpe que teve entre seus mentores os bacharéis), foi-se solidificando uma casta jurídica no Brasil.  Com a Constituição Federal de 1988, um imenso lobby da “alta” advocacia (dominada pelas elites) conseguiu consolidar a casta bacharelesca - formada pelas poderosas bancas de advogados, por promotores, juízes e policiais graduados em direito – que foi alargando seus domínios na máquina estatal, via concurso. Nos últimos anos, essa casta, sobrepujando os outros poderes (via chantagem ou através da persecução criminal seletiva) passou a dominar o Estado. É o que denominamos de juristocracia.

Trata-se de um estamento paralelo ao estado dito democrático, que controla o poder judiciário de cabo à rabo. A grande maioria dos juízes, desde a primeira instância até os tribunais superiores, são os filhos das elites; o mesmo se repetindo nos ministérios públicos e nas cúpulas das polícias, salvo raríssimas exceções. São os homens brancos, de classe média e os ricos. Uma foto do Tribunal de Justiça de São Paulo, de 2015 (aqui) explicita esse perfil socioeconômico, étnico, geracional e de gênero do judiciário brasileiro.

Essa república dos bacharéis é defendida com unhas e dentes pela mídia empresarial e pelos segmentos mais conservadores, inclusive da Academia, um dos setores de formação da opinião mais colonizados do país – que fornece os “especialistas” para, sob a aura da ciência, dizer o que certo ou errado à sociedade.

A estrutura judicial brasileira serve para garantir privilégios de classe, operar discricionariamente a aplicação da lei, perseguir inimigos (bodes expiatórios geralmente construídos pela mídia), proteger interesses econômicos dentro e fora do aparelho do estado, operar a favor do capital e contra os interesses públicos. Tudo sob o manto da lei, essa invenção liberal-democrática-burguesa usada, também, como armadilha para ludibriar o povo, à medida que a igualdade de direitos é mera convenção retórica em nosso país.

A lei, no Brasil, é uma dádiva para os ricos e para os membros da classe média. Para os demais, salvo exceções, é açoite. Como nesse país nunca tivemos um estado de bem-estar social, a lei é instrumento de salvaguardas para 30% dos brasileiros.

Aqui, temos 1.200 cursos superiores de direito. Todo o restante do mundo tem 1.100 cursos. Não obstante, somos um país cujo acesso à justiça está limitado à classe média e a quem pode pagar um advogado.  Enquanto isso, a fábrica de formar bacharéis de direito funciona a todo vapor. Trata-se de excelente negócio.

Qualquer cidadão brasileiro sabe que nossa justiça é injusta; que o poder judiciário é elitista, hermético e antidemocrático; que as leis são operadas para favorecerem uns em detrimento de outros.

Ressalvamos a valorosa e combativa empreitada de muitos operadores do direito que, à revelia da casta, têm tentado, a todo custo, pautar suas ações dentro dos princípios republicanos e democráticos, inclusive sendo excluídos de instituições, agremiações e da mídia empresarial e venal. Apesar de formarem um contingente numericamente maior, esses grupos de advogados são minoritários quando se trata do controle do poder da corporação. Reconhecemos, também, algumas entidades de advogados populares e setores da justiça e do MP que lutam por uma democratização do judiciário e por uma república de fato.

É dentro desse contexto que devemos analisar o julgamento do ex-presidente Lula, pelo TRF4. Tal julgamento mostrará para o mundo o que já é conhecido da maioria dos brasileiros. Uma justiça seletiva que usa métodos medievais contra uns e protege desavergonhadamente outros.

Um processo que, desde sua origem, é fragrantemente político.  Um julgamento que caminhou ao longo dos anos, na primeira instância, com o único objetivo de condenar Lula e expurga-lo, juntamente com o PT, da disputa eleitoral. Um enredo que contou com a conivência de grande parte do sistema de justiça que, amalgamado atualmente aos poderes executivo e legislativo, colabora estrategicamente na empreitada golpista.

O grampo ilegal da presidenta Dilma, autorizado por Moro (o juiz que fez acordos de cooperação com os Estados Unidos burlando a Constituição – que não concede essa prerrogativa a juiz de primeira instância) e divulgado em rede nacional, acatado covardemente e com cumplicidade pelo STF, já sinalizava que a perseguição a Lula se tratava de um processo de exceção.

Depois da criação do “domínio de fato à brasileira”, sob os arroubos de Joaquim Barbosa, criou-se agora mais uma figura esdrúxula do direito persecutório brasileiro: o “domínio de fato da posse”. Ou seja, sem nenhum documento que comprove a posse do imóvel, objeto do processo criminal, o ex-presidente terá, muito provavelmente, a sentença de Moro confirmada pelo Tribunal Federal da Quarta Região. Sendo que num juízo, Lula já foi condenado sem provas; noutro, de Brasília, o mesmo imóvel é penhorado como sendo da construtora OAS. É o judiciário “casa da mãe Joana”, made in Brazil, com “z”. Com todo o respeito à mãe Joana.

Aliar-se ao judiciário sempre foi o melhor recurso das elites e, atualmente, é o melhor negócio dos golpistas para se manterem no poder. Afinal, as elites nacionais e os detentores do capital rentista sabem que o povo, com erros e acertos, pode alterar os poderes originários através das eleições. 

Portanto, para os poderosos, que só têm compromissos com uma república de faz-de-contas, que se lixem as aparências democráticas e que o judiciário dê as cartas do jogo.

Neste país, o poder responsável pela aplicação da lei é o primeiro a usurpá-la, à medida, por exemplo, que seus quadros recebem salários estratosféricos, acintosos numa sociedade na qual 70% dos brasileiros ganham até três salários mínimos e, como se não bastasse tal disparate a denunciar as estruturas corruptas que sustentam essa sociedade, ainda faturam acima do teto constitucional, com proventos maquiados através de penduricalhos legais. Ou seja, a lei no Brasil é como terno de ocasião: feita à medida para determinados demandantes.

O poder judiciário que, lamentavelmente, já não goza de respeito e consideração por parte da maioria dos brasileiros, salvo daqueles que são protegidos por ele, passará a ser objeto de escárnio da comunidade internacional que, cada vez mais, tem considerado que o golpe ocorrido no Brasil não foi somente uma ruptura arquitetada pelo Congresso dos corruptos à serviço de negócios externos, mas é fundamentalmente um rapto do judiciário a serviço de interesses inconfessáveis. 

Segundo o supracitado professor Comparato, “interesses norte-americanos estão nos bastidores do movimento de ataque ao lulismo, que resultou na derrubada do governo de Dilma Rousseff.


segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

2018 JÁ COMEÇOU. COMO TERMINARÁ?



Fonte: QuadrinhosNet/Affonso

Em 2017, o Brasil conviveu pacificamente com uma democracia de fachada. Com o golpe, no ano anterior, os três poderes da República se fundiram num só conglomerado a serviço do capital financeiro especulativo e outros grupos econômicos, liderados pelo empresariado do “pato amarelo”. A interferência norte-americana, promovendo “golpes brandos” em países da América Latina, evidenciou que a velha geopolítica colonialista ainda sobrevive.[1]

Esse conglomerado age de maneira unitária, embora com dissidências internas e contradições, e está amalgamado nos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Não considera a Constituição, a soberania popular ou qualquer coisa que sustente o caráter republicano do nosso país. {*}

Os três poderes da república, transformados num único corpo, agem sob o comando direto e exclusivo de banqueiros, especuladores e empresas nacionais e transnacionais. O controle do poder não está com o povo e nem com os que se auto-intitulam políticos.

O cinismo e a falta de escrúpulos desse conglomerado golpista convivem, lamentavelmente, com a passividade e a idiotia coletiva de uma sociedade anestesiada por uma mídia empresarial, venal e antidemocrática não comprometida com a nossa história, nosso povo e muito menos com a verdade. A revolta já teria acontecido se a população não estivesse hipnotizada pelos meios de comunicação empresariais.

A mídia, ópio do povo, é a principal fabricante de fake-news na atualidade, porque se transformou no instrumento do capitalismo rentista para a manipulação grosseira da realidade, principalmente da política, e a produção enviesada da informação.

Os tanques de outrora foram substituídos por outras armas, aparentemente menos letais. No Brasil, as togas substituíram os militares. Os mecanismos de controle, opressão e exclusão também são mais sofisticados. Tudo a dar uma falsa aparência de normalidade e legalidade democráticas.


Democracia, capitalismo e a grande farsa
Como explicar esse estado de coisas, como se vivêssemos em plena democracia?

 Desde sua origem, na Grécia antiga, a democracia é um sistema de hierarquização do poder arquitetado por atores políticos que têm interesses de classe por esse modelo de governança. (O conceito de classe é aqui utilizado para designar os diferentes grupos sociais, com distintos recursos de acesso ao poder, que compõem uma sociedade).

Como sabemos, a democracia grega, nos seus primórdios, há cerca de 2.500 anos, excluía dos processos decisórios as mulheres, os jovens, os estrangeiros e os escravos. Ou seja, na democracia, cuja palavra significa “governo do povo”, somente os homens livres deliberavam sobre os rumos da polis (cidade). O demos (povo) se restringia, portanto, aos homens livres.

A história, contada desde então, esconde o fato de que a democracia grega funcionou porque a classe antagônica estava excluída do processo deliberativo: os escravos não poderiam, jamais, participar das decisões dos homens livres. Em outras palavras, a democracia se edificou numa ordem social escravagista. Se os escravos fossem incluídos à participação no processo decisório, certamente toda a ordem socioeconômica à época seria implodida, a ocasionar uma divisão estrutural daquela sociedade.

Resumindo: já no seu nascedouro, a democracia grega apontava que interesses em contradição são inconciliáveis e, para o funcionamento desse sistema, alguns sempre dominarão outros.

A partir do século XVI, a experiência democrática grega é retomada com a criação dos chamados estados-nação. E, gradualmente, com a chegada dos burgueses ao centro do poder, foi-se consolidando no ocidente outra ideia segundo a qual democracia e capitalismo são sinônimos.

Assim, nas democracias contemporâneas os homens (brancos), detentores do capital, os chamados burgueses, assumiram o controle do poder. E, como ocorreu na Grécia antiga, para que o sistema democrático funcionasse nesse novo contexto histórico, era preciso que a classe antagônica, os operários, a maioria da população, fosse excluída dos processos decisórios.

Essa exclusão se concretiza utilizando-se de várias estratégias. Nas democracias representativas, por exemplo, os sistemas judiciário e eleitoral são montados para passar a impressão que há isonomia na competição eleitoral e no acesso ao poder. Na verdade, há mecanismos (legislação eleitoral, por exemplo) que obstaculizam a participação efetiva da maioria da população na disputa isonômica do poder e limita o acesso popular nos processos decisórios.

Com a “doutrinação midiática”, os eleitores pensam que estão elegendo representantes. Na verdade, elegem, majoritariamente, os donos do capital ou os seus prepostos e as elites partidárias que colonizam a maioria dos partidos, inclusas as agremiações autodenominadas de “esquerdas”.

A ideia de eleições livres, diretas e regulares esconde, sorrateiramente, uma série de regras procedimentais que impedem a representação efetiva da maioria da população. É só verificarmos o perfil socioeconômico dos representantes eleitos nas câmaras de vereadores, assembleias e no congresso nacional. Constataremos, cabalmente, que a maioria esmagadora da população não está representada (de fato) nas casas legislativas, apesar das regras procedimentais da democracia (eleições livres, diretas e regulares; mídia livre, etc.) funcionarem perfeitamente. O mesmo se dá em relação ao poder executivo: os donos do dinheiro e as elites partidárias sempre se beneficiam das regras eleitorais, das condições financeiros e da ação direta do sistema de justiça para dominarem esse poder.

Por óbvio, se a democracia fosse realmente levada às últimas consequências, os trabalhadores, que são a maioria em todos os países, teriam o mesmo poder dos burgueses.  E, sendo maioria, os operários definiriam os rumos da sociedade.

Temos que admitir, não obstante, que os regimes democráticos realizaram importantes avanços sociais no século XX, principalmente após a segunda guerra mundial. Através de pactos entre elites ou na adequação das demandas das esquerdas socialistas aos modelos democráticos capitalistas, tais regimes melhoraram (e muito) a vida dos trabalhadores em diversos países. Em alguns países, os trabalhadores chegaram ao centro do poder, por pequenos períodos. Noutros, as migalhas concedidas aos trabalhadores foram abundantes, passando a impressão que o povo, ou seja, a maioria dos trabalhadores, decidia os rumos de suas vidas.

É preciso considerar, também, que a decadência de outros modelos de governança consolidou a crença na eficácia inquestionável das democracias capitalistas. Experiências de governos socialistas perderam a batalha (da disputa acerca do melhor modelo de governança) na mídia empresarial, principal front de manutenção dos governos democrático-capitalistas na atualidade.


Democracia de fachada e estado de exceção
No Brasil, nunca tivemos uma democracia real. Historicamente, as elites nacionais sempre se apropriaram do erário e do estado para se locupletarem e ampliarem seus negócios e domínios, oferecendo sobejos ao povo. Em alguns raríssimos momentos, houve pífia expansão do estado social, não alterando substantivamente uma ordem social estruturalmente excludente, injusta, perversa e violenta.

Não experimentamos, ao longo do século XX, o “século dos direitos” (Bobbio), mudanças estruturais na nossa sociedade. A Constituição Federal de 1988, tardiamente, propiciou alguns parcos avanços sociais à maioria dos brasileiros. Governos mais sensíveis aos trabalhadores, como nas gestões do PT, colocaram o estado um pouco mais à serviço dos setores historicamente excluídos e marginalizados. Isso produziu grande diferença numa sociedade ainda de base escravocrata.

Mas, veio o golpe. E os neocoronéis, filhos das elites, históricos saqueadores do erário e das riquezas nacionais, tomaram novamente de assalto o poder. E, como uma horda de bárbaros sem temor e pudor, respaldados pela velha justiça da Casa Grande e vitaminados pela mídia empresarial e pela classe média dos privilegiados lançaram o país de volta ao passado.

Não à toa, os golpistas recorreram ao lema da velha república (criada num golpe por latifundiários, maçons, militares e positivistas), “ordem e progresso”, para caracterizar um governo que, entre inúmeros retrocessos históricos, sociais e políticos não tem um pingo de vergonha em anistiar os latifundiários, os banqueiros e os grandes empresários – eternos larápios do patrimônio e das riquezas nacionais - e penalizar os trabalhadores.

O golpe confirmou a tese: a democracia capitalista brasileira só é boa enquanto uns poucos se locupletam dos frutos do trabalho e da vida da maioria. E quando essas castas de privilegiados e perversos resolvem se unir para defenderem seus interesses a qualquer custo, nem mesmo as aparências (democráticas) são mantidas.

Aqui, nunca tivemos um processo revolucionário de baixo para cima. As poucas tentativas de sublevação do andar de baixo foram violentamente sufocadas pelas elites no poder. Também nunca convivemos com uma guerra - que desperta solidariedade entre as classes. Talvez, por esses motivos, dentre outras causas, os trabalhadores, maioria da população, sempre se contentaram com as migalhas. Some-se a isso o sistema educacional e a cultura religiosa que domesticam as mentes e corações dos trabalhadores a aceitarem passivamente suas (péssimas) condições sociais.

Os poucos avanços sociais que foram auferidos em mais de cinco séculos só foram possíveis em governos que vigoraram através de pactos entre elites.

O quadro mundial também deve ser considerado. A subalternidade da política à economia, característica do neoliberalismo, ajuda a explicar a crise de legitimidade dos órgãos eletivos, a centralidade do deus-mercado e a fragilidade de governos populares.

Neste contexto, podemos falar de um estado de exceção - uma exigência do neoliberalismo, que reconfigura as estruturas do poder e do Estado a partir de uma lógica de exceção, corroendo até mesmo os pressupostos da democracia liberal.

Trata-se de um estado de exceção porque convivemos com uma democracia sem povo, a serviço do mercado[2], e sustentada por medidas autoritárias dos três poderes amalgamados contra o povo e a Nação. Como diz Joseph Stiglitz, “Os ricos não precisam do Estado de Direito; eles podem, e de fato fazem, moldar os processos econômicos e políticos em seu proveito”.[3]

Acontece que, se a exceção vira regra teremos diante de nós o imenso desafio de pensar como fazer luta de classes sem as parcas garantias do direito burguês.


Perspectivas para 2018
Muitos analistas políticos têm considerado que, com o advento do neoliberalismo a partir da década de 1980, iniciou-se um processo de implosão dos estados de bem-estar social. No Brasil, tardiamente, esse fenômeno ocorreu décadas depois: houve tentativas durante os governos de FHC, mas sua concretização se deu com o golpe de 2016.

É importante considerarmos, mesmo que rapidamente, algumas das variáveis que deflagraram uma série de conflitos sociais, políticos e culturais. Partiremos dos eventos ocorridos em 2013, as chamadas “jornadas de junho”. Naquele momento, não somente no Brasil, mas em várias partes do mundo, uma série de atos de protesto questionavam, entre outros, a democracia representativa. Vozes de diversos segmentos sociais, com interesses diferentes, demandavam mudanças substantivas no modelo esgarçado de governança democrática, no qual os representantes eleitos não representam os interesses da maioria dos eleitores.

Havia evidências claras de múltiplas falências que, a rigor, apontavam para algo muito mais profundo: o esgotamento do modelo do capitalismo rentista. Esse esgotamento pode ser percebido em várias dimensões: colapso do ecossistema; da política; da economia baseada na especulação (e sua última grande crise, a partir de 2008, nos Estado Unidos); das instituições tradicionais (incapazes de dar respostas às demandas de sociedades cada vez mais complexas).

No mesmo período, sinais do refluxo da crise econômica global batiam às portas do nosso país. Como sabemos, o sistema político foi incapaz de incorporar as reivindicações dos diversos segmentos que saíram às ruas naquele ano.

Nesse contexto, é importante analisar o fato de parte da classe média brasileira, historicamente acostumada com privilégios e não com direitos, bandeou para um discurso e prática que beiram o fascismo.  Ao invés de usar seu poderio político para lutar por justiça social e equidade, ou seja, contra a concentração de renda nas mãos de poucos, segmentos da classe média direcionam seu discurso odioso para os pobres e para aqueles políticos e partidos que representam tais extratos sociais. Considerando-se “superiores”, não miram o andar de cima; ao contrário, miram o andar de baixo, extravasando o ódio contra os pobres.

A violência, que sempre determinou a “ordem” das relações sociais no Brasil, tornou-se o recurso utilizado em doses cavalares por setores da classe média que tentam reposicionar-se num cenário de disputas reais e simbólicas. 

Não nos enganemos: a paz dos túmulos parece que não existe. Dito de outra maneira, não haverá justiça social e igualdade no Brasil sem tocar nos privilégios historicamente acumulados e coniventemente aceitos pela sociedade. Não é possível alcançar a paz sem perder nada.

Porém, aparentemente, não há mudanças significativas à vista, pelo menos no curto prazo. Nas condições históricas atuais, os processos revolucionários são utópicos. O nível de controle social, principalmente via mídia e poder judiciário, nunca foi tão sofisticado. O individualismo, exacerbado pelo capitalismo, destrói a solidariedade e produz seres humanos que se preocupam só com seus umbigos.

Nesse contexto, defender essa democracia à brasileira e nos iludirmos na crença segundo a qual eleições regulares corrigirão nossas mazelas históricas é falácia.

Desgraçadamente, não há, até o momento, um programa de governo que trata de debater e pautar as reformas estruturais que conformam esse modelo vergonhoso de sociedade. E, sem reformas estruturais, teremos que nos conformar na defesa de uma democracia farsante, que nunca produzirá verdadeira equidade nessa banda dos trópicos. Continuaremos a viver num país com colossal desigualdade e violência.

As eleições deste ano são uma incógnita, mas, dificilmente apresentarão um cenário positivo. Os golpistas não largarão o “osso”; por isso, os três poderes amalgamados num só corpo construirão estratégias para retirar do povo o destino do país. Na melhor das hipóteses, o candidato que está mais próximo das demandas populares, o ex-presidente Lula, será inabilitado do processo eleitoral.

Acontece, que o crescimento da extrema direita no país exige uma resposta organizada e qualificada dos segmentos da sociedade civil que carregam uma perspectiva humanista. Portanto, não se trata de um problema somente “da esquerda”. Quem pensa assim é arrogante.

Não tenhamos, também, ilusões messiânicas, defendo a tese segundo a qual a luta política se limita nas eleições. Além de eleições, é importante articular um projeto nacional, que inclua pelo menos um referendo revogatório das reformas dos golpistas, além de profundas reformas estruturais: política, da mídia, tributária, da justiça, entre outras. Isso significa, na prática, um congresso totalmente novo e conectado com interesses populares e nacionais.

Se isso ocorrer, desse estrume - que é o governo golpista - brotarão as raízes para a construção de uma democracia real – experiência inédita nessa terra de santa cruz.






[1] Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz de 1980, escreveu artigo no qual condenava o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, definindo-o como "golpe de Estado brando", já experimentando em países como Honduras e Paraguai. Segundo ele, "domesticar os governos e recolonizar a América Latina é o objetivo" dos golpes em curso na região. "O que a direita não consegue alcançar nas urnas buscará alcançar mediante a destituição ilegal de presidentes, de privatizações de empresas públicas e a entrega de recursos naturais", diz. Ao falar de Michel Temer, Esquivel relata que, segundo o Wikileaks, "o atual depositário da Presidência do Brasil foi colaborador da inteligência norte-americana entregando documentos sensíveis a sua embaixada".  Leia o artigo em : http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/555205-democracias-golpe-a-golpe
[2] A riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial equivale à riqueza dos 99% restantes. Essa é a conclusão de um estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse, relativos a outubro de 2015. O Relatório Mundial de Desigualdade revelou que, em 2016, o Brasil ficava em segundo lugar em um ranking de desigualdade se considerada a fatia da renda nacional capturada pelos 10% mais ricos da população. Por aqui, 55% da renda fica com essa parcela da população, número igual ao da Índia (55%) e equivalente ao da África Subsaariana (54%), atrás apenas do Oriente Médio (61%).
[3] STIGLITZ, Joseph E. O preço da desigualdade. Lisboa: Bertrand Editora, 2014, p. 208.
{*} Baseado em: ABDALLA, M. A democracia no capitalismo. IN: Souza, R.; P, Adriana; Alves, C. (orgs). Democracia em crise: o Brasil contemporâneo. Editora PUC Minas, 2017, pp 19-44.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Um balanço da segurança pública e justiça criminal



Para um balanço da política de segurança pública (local, regional e/ou nacional), via de regra utilizam-se indicadores de criminalidade: quais crimes aumentaram e quais caíram num determinado espaço e tempo. E se produz uma análise a respeito da variação desses indicadores.

Esse tipo de apreciação tem um valor muito relativo. Porque, entre outras questões, a criminalidade é sazonal; os indicadores refletem realidades conjunturais e escondem uma série de ações e omissões das agências públicas no enfrentamento do fenômeno. Ou seja, indicadores em baixa num determinado momento e local não significam, necessariamente, melhorias objetivas e duradouras da segurança pública; o contrário também é verdadeiro.

Para uma análise mais profunda e sistêmica da violência e da criminalidade é preciso discutir as causas desses fenômenos e como está estruturado o sistema de prevenção e combate aos crimes. Somente assim, poderemos entender porque a violência estrutural e cultural são características históricas e persistentes em nossa sociedade (há séculos). E, entra ano, sai ano, com pequenas alterações aqui e acolá, as múltiplas manifestações da violência persistem e as soluções efetivas para o enfrentamento do problema sequer são pautadas.

Nesse sentido, se lançarmos nosso olhar para indicadores em períodos mais ampliados perceberemos que, apesar de mudanças pontuais num ou noutro local ou num determinado período, convivemos com absurdos índices de violência e de crimes, naturalizados pelos governos e pela sociedade.

Em primeiro lugar é preciso reconhecer que enquanto não se processarem profundas reformas nos sistemas de segurança pública e de justiça criminal brasileiros não daremos um salto qualitativo em termos de arrefecimento da violência e promoção da paz no Brasil. Tais sistemas, que não foram reformados no processo de redemocratização, estão totalmente obsoletos, mesmo na realidade atual de uma democracia de mentirinha (ou de baixíssima intensidade, para agradar os conservadores).

Soa hipocrisia, inclusive, falar de segurança pública quando o poder central está nas mãos de grupos de desqualificados que governam a Nação. Alguns dos membros desses grupos, amalgamados nos três poderes da república, são identificados como pertencentes a grandes organizações criminosas. Portando, como combater o crime, quando o crime nos governa?


Como se não bastasse essa situação vergonhosa, é preciso constatar que os sistemas de segurança pública e justiça criminal são reativos, seletivos, altamente insulados e corporativos. Funcionam quase como um estado paralelo dentro do dito "Estado democrático e de direito". Tratam do fenômeno do crime com imensa discricionariedade, privilegiando alguns segmentos sociais em detrimento de outros.

Basta analisarmos os indicadores de crimes em quaisquer cidades médias ou grandes do nosso estado ou país. Numa mesma cidade, há ilhas de segurança, tranquilidade e conforto e espaços altamente violentos. As polícias e a justiça atuam nesses espaços de forma a protegerem alguns segmentos e criminalizarem outros.

Trata-se da velha história da Casa Grande e da senzala: o malvado e perigoso é sempre o pobre e o preto da favela; os usuários de drogas pobres e os microtraficantes da periferia. O rico e o branco podem até transportar o "bagulho" em altas quantidades em helicópteros... e isso não é problema paras as polícias e para a justiça.

Ademais, a insegurança pública gera muitos dividendos políticos e econômicos. A indústria da segurança privada é uma das que mais faturam no país. E, apesar de reclamarem o tempo todo da insegurança, os ricos e os segmentos da classe média têm alto poder de vocalização de suas demandas; por isso, seus apelos são visibilizados pela mídia empresarial e, em contrapartida, são os favorecidos, porque podem pagar por segurança privada e, se precisarem, têm as salvaguardas dos sistemas públicos de segurança e de justiça.

Por outro lado, aqueles segmentos sociais que mais precisam de um aparato público de proteção e de justiça são os mais vitimizados pelo modelo inquisitorial, reativo e seletivamente vingativo dos sistemas de segurança e justiça.

Há muitos bons policiais, promotores e juízes. Mas, institucionalmente, as elites das polícias, do MP e do judiciário estão mais preocupadas com disputas interinstitucionais e na defesa dos privilégios corporativos do que com a efetividade de tais instituições.

Em Minas, por exemplo, não obstante o aumento exponencial dos investimentos em segurança pública na última década, quando vivíamos tempos de vacas gordas, observamos a persistência de indicadores de crimes ruins se compararmos com sociedades democráticas. É claro que se a comparação for com outros estados da federação, parece que estamos em situação confortável. Essa percepção equivocada é sustentada por interesses corporativos, governamentais e por uma mídia que não consegue enxergar para além das nossas montanhas e que tem parte de sua audiência e seu faturamento no sensacionalismo da cobertura sobre o cotidiano da violência.

Junte-se a tudo isso o fato de que os governantes, nos três poderes do Estado e nos três níveis de governo, não têm disposição para enfrentar as históricas mazelas dos sistemas de segurança e justiça. Preferem a condição de reféns das corporações policiais e judiciárias a efetivarem reformas substantivas que alterem as práticas equivocadas, autoritárias e discricionárias desses sistemas. Ou, quando os indicadores de crime viram manchete, encenam um jogo de empurra: municípios apontam o dedo para o estado; que aponta o dedo para a União; que devolve para os estados e municípios. Polícias culpam o MP e Justiça. A justiça culpa as polícias e o sistema prisional. Guardas municipais culpam as polícias que culpam a justiça e... assim “a nave vai”.

Por isso, entra ano, sai ano, observamos alterações pontuais nos indicadores de crimes. E, mesmo nos locais onde esses índices são considerados baixos, basta uma rápida comparação com países verdadeiramente democráticos que chegaremos à triste conclusão: vivemos e convivemos com o caos seletivo na segurança, na justiça, nas prisões...

Acontece, que esse caos, como dito anteriormente, beneficia uns, apesar de prejudicar a maioria dos brasileiros. Talvez, por isso, apesar do estardalhaço geral, os sistemas de segurança e de justiça não são reformados. Repetimos: alguns ganham com esse caos.

No Brasil, a justiça e as polícias sempre protegeram a Casa Grande. E a senzala sempre foi tratada como cidadania de segunda ou terceira categorias.

E, enquanto persistir esse modo de funcionamento de uma sociedade estruturalmente injusta, desigual e violenta, as discussões sobre segurança e justiça se limitarão a indicadores que variam de acordo com circunstâncias, de forma pontual e para esconder interesses inconfessáveis.

Porém, uma análise mais profunda dos indicadores de crimes no Brasil - desde a chamada redemocratização – confirma: vivemos numa sociedade que naturalizou a violência estrutural e cultural porque as vítimas são, majoritariamente, pobres e negros; os governos ditos democráticos não adequaram os sistemas de segurança pública e justiça a uma ordem verdadeiramente democrática; tais sistemas protegem alguns segmentos em detrimento de outros e produzem lucros para alguns, vitimizando a maioria dos brasileiros.

(OBS: Didaticamente, optei por fazer uma distinção entre sistema de segurança pública e sistema de justiça criminal. A rigor, o sistema de justiça criminal contempla também a segurança pública).