sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Direitos Humanos e discursos de ódio

Os direitos humanos são todos os direitos e direitos de todos. Já numa sociedade de consumo, o individualismo exacerbado inclui poucos.
A unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores.


A unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. (Reprodução/ Pixabay)
Por Robson Sávio Reis Souza*
Em 10 de dezembro recordamos a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se há algo que comemorar – a humanidade incorporou em boa medida os pressupostos defendidos no documento da ONU de 1948 –, ainda resta um longo caminho a ser percorrido pela efetividade da cidadania em nosso país. Afinal, os direitos humanos são todos os direitos (civis, políticos, culturais, econômicos, sociais...) e são direitos de todos (independentemente da origem étnica, da condição econômica, da orientação sexual e das preferências políticas, religiosas e ideológicas...
    No plano internacional observamos que o capital cada vez mais impera absoluto; a economia se sobrepõe à política e os direitos sociais são drasticamente reduzidos. Numa sociedade de consumo, o individualismo exacerbado inclui poucos. A imensa maioria, os pobres e despossuídos de direitos – também chamados de consumidores falhos – encontra-se em variadas situações de exclusão. E nesse contexto podemos afirmar: para a realização plena dos direitos humanos a intervenção do Estado – para diminuir as perversidades do capitalismo – é crucial.
    No Brasil – um país historicamente marcado pela violência estrutural e pela justiça seletiva, cuja cultura dominante e elitista naturaliza as desigualdades étnico-raciais e socioeconômicas (produtoras de múltiplas exclusões e de várias formas de preconceito e discriminações) – o debate acerca da efetividade dos direitos humanos deixou de ser uma agenda civilizatória e transformou-se numa plataforma criminalizada vigorosamente por segmentos conservadoras, elitistas e antidemocráticos.
    Ademais, a mídia empresarial, que vocaliza as demandas das elites nacionais, é pródiga na exaltação e propagação das múltiplas formas de violências, a amplificar discursos de ódio e a desdenhar os princípios basilares do estado democrático de direito, assentados no documento da ONU de 1948.
    Nos últimos tempos, tempos tenebrosos advindos com um golpe arquitetado pelos segmentos mais conservadores, retrógrados e violentos da sociedade, observamos uma crescente criminalização dos discursos em defesa dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que discursos de ódio povoam o debate político, social, religioso e nas redes sociais.
    Tais discursos sombrios tentam consolidar uma narrativa única e catastrófica, criminalizando todas as diferenças sociais, políticas, étnicas, de gênero; semeando desesperança e povoando o imaginário social de medo, aversão e apreensão em relação aos outros, ao diferente, ao presente e futuro.
    O filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek nos ajuda a entender essa narrativa autoritária: a unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. Essa estratégia justificou o nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...) e o golpe civil-militar de 1964 (medo do comunismo), por exemplo. Em certa medida, esses mesmos discursos estão muito salientes no momento sinistro que vivemos, quando a Nação é comandada por um grupo de desqualificados (nos três poderes) que não respeitam o povo, nem os seus direitos duramente conquistados nos últimos tempos.
    A soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário social) é o ambiente propício para se criar um clima de pânico, instalar a desconfiança generalizada, propagandear uma insatisfação irracional, criminalizar os direitos humanos. A partir daí, pode-se construir os pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o injustificável; elegem-se bodes expiatórios lançando-os à fogueira da condenação midiática. E os direitos humanos deixam de ser a bússola que norteia os ideais políticos e sociais.
    A estratégia discursiva para unificar todos os "nossos medos" produz uma aceitação aos discursos de ódio, de violência, da eliminação de tudo o que é diferente de um padrão imposto pelos poderosos.
    E a religião não está fora desse contexto. Não há nada mais perverso, doentio e perigoso que a mistura entre o radicalismo político e o fundamentalismo religioso. O fanático político-religioso não tem limites; não tem ética; não age com a razão. Age por convicção, ou seja, pela crença pervertida que é um porta-voz do bem ou um discípulo de uma causa transcendental. Está convicto que tem uma missão a ser cumprida e sendo superior, porque é um enviado de Deus para extirpar o mal da terra, deve salvar o mundo daqueles "eleitos" como sendo os ímpios.
    Os fanáticos político-religiosos se congregam em castas herméticas cujo objetivo é criar mecanismos de autoproteção. Só assim se sentem seguros e empoderados para cumprir sua missão redentora. Estão convictos: somos do bem; podemos tudo!
    É por isso que o fanático político-religioso tem na pregação e na oratória suas principais armas para arrebanhar adeptos. Utiliza-se da propagação do medo para justificar a consolidação de uma seita baseada em discursos de ódio e de vingança. Por mais paradoxal que possa parecer, há muito discurso religioso criminalizando os direitos humanos.
    Outra forma para desconstruir e deslegitimar o discurso dos direitos humanos está consolidada no adensamento do estado penal em nosso país. O direito penal seletivamente aplicado para resolver todos os problemas e mazelas sociais e políticos é uma forma de consolidação das desigualdades e das múltiplas injustiças.
    Lamentavelmente, o reducionismo judicial, transformado em ativismo persecutório, tem produzido uma justiça ainda mais seletiva e corroborado um pensamento torto, simplista, odioso e infantil Brasil afora. Esse pensamento espraia-se nas redes sociais, contaminando-as de ódio e caça às bruxas.
    Quando a acusação em doses cavalares e à revelia do devido processo legal é transformada em evidências de culpa, convicção, chantagem e difusão do medo e do ódio, mesmo não havendo investigações suficientes, provas cabais e apresentação do contraditório; quando a justiça não age de forma isonômica; quando o objetivo é destruir carreiras e reputações e promover caça às bruxas flerta-se com um estado totalitário que despreza a doutrina dos direitos humanos.
     Como diz o poeta, “se muito já foi feito, há muito que se fazer”. Que nesse 10 de dezembro cada cidadão – que tem na democracia, na justiça, na liberdade e na igualdade os referenciais éticos para sua vida – sinta-se responsável na luta pela efetividade dos direitos humanos em nosso país, principalmente nesses tempos sombrios e temerosos.
    Robson Sávio Reis Souza é coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) e da Comissão da Verdade em Minas Gerais; membro do Fórum Mineiro de Direitos Humanos.
    Artigo publicado originalmente no Portal Dom Total, em 08/12/2017.