sexta-feira, 27 de março de 2015

Democracia em risco? A instabilidade política e o inconformismo dos derrotados

Em entrevista ao programa MUNDO POLÍTICO, da TV da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, conversei com a jornalista Vivian Menezes sobre a conjuntura política atual. 

O programa da série "Democracia em risco? A instabilidade política e o inconformismo dos derrotados" aborda as manifestações ocorridas nos dias 13 e 15 de março, as dificuldades da presidente na produção de uma agenda política positiva, as iniciativas cambiantes das oposições, o papel desempenhado pela mídia no aprofundamento da crise de governabilidade, o conservadorismo moralizador no discurso anti-corrupção e também os erros cometidos pelo PT e pela presidente que corroboram para o agravamento das disputas no cenário da política institucional, com reflexos na sociedade, colocando em xeque a própria democracia. 

Assista o vídeo, de 25 minutos, abaixo, e deixe seus comentários, críticas e sugestões:



terça-feira, 24 de março de 2015

O elo perdido: sobre a falácia da redução da maioridade penal

Volta à tona a discussão sobre a redução da maioridade penal. Todas as vezes que ocorre um crime a provocar grande comoção nacional, parte da sociedade brasileira – capitaneada por um discurso minimalista e conservador, com repercussão imediata na grande mídia –  clama por leis draconianas como lenitivo para diminuir a criminalidade violenta. Foi assim com a "criação" da lei de crimes hediondos, por exemplo. O resultado desse tipo de medida repressiva e pontual –  objetivando o adensamento do estado penal –  não apresenta resultado efetivo em termos de diminuição dos crimes.

De tempos em tempos, alguns temas voltam ao noticiário e às redes sociais. O da redução da maioridade penal é um deles. A dor dos que perderam algum parente vítima de violência praticada por um menor é legítima. Porém, há outros fatores a serem considerados antes de  decidir que jovens de 16 a 18 anos também podem ir para as penitenciárias.

É admissível e compreensível que, diante de um crime bárbaro, os parentes da vítima desejem vingança. Sob o ponto de vista privado, essa é uma prerrogativa do indivíduo; dos que sofrem a violência desproporcional de qualquer forma e estão sob o impacto dela. Porém, o Estado não tem essa prerrogativa. Considerando-se que o indivíduo pode, intimamente, desejar vingança (haja vista nossa cultura judaico-cristã, que valoriza os atos sacrificiais), o Estado –  mantenedor das conquistas do processo civilizatório, cuja base está na garantia dos direitos humanos –  não pode ser vingativo e passional em seus atos. 

A mesma indignação que move muitas pessoas a desejarem o recrudescimento penal (desde que seja sempre direcionado para o outro) em momentos de comoção não é mobilizadora frente à violência e carnificina generalizadas que atingem, cotidianamente, milhares de pessoas. Segundo o Ministério da Saúde, do total de 1.103.088 mortes notificadas em 2009, 138.697 (12,5%) foram decorrentes de causas externas (que poderiam ser evitáveis), representando a terceira causa mais frequente de morte no Brasil.

A mesma indignação que move muitas pessoas a desejarem o recrudescimento penal (desde que seja sempre direcionado para o outro) em momentos de comoção não é mobilizadora frente à violência e carnificina generalizadas que atingem, cotidianamente, milhares de pessoas.


A resposta simplista, da sociedade e do Estado, para enfrentar a criminalidade violenta é o encarceramento. Nos últimos 20 anos, nosso sistema prisional teve um crescimento de 450%. Hoje, são mais de 550 mil presos (cerca de 60% cometeram crimes contra o patrimônio; 30%, crimes relacionados a drogas e menos de 10% crimes contra a vida). Superlotado, o sistema prisional tem um déficit de cerca de 250 mil vagas. Em condições degradantes e subumanas, quase 80% dos egressos prisionais voltam a praticar crimes. É neste sistema que desejamos trancafiar adolescentes autores de atos infracionais?

Paradoxalmente, nesse período de brutal encarceramento, as taxas de crimes violentos mantiveram-se em patamares elevadíssimos. A Organização Mundial de Saúde informa que taxas de homicídio acima de 10 mortes por 100 mil habitantes são epidêmicas. A média brasileira, nesse quesito, é de 29 por 100 mil, sendo que na maioria das capitais essa cifra supera 30 homicídios por 100 mil, chegando, por exemplo, em Maceió, à estrondosa cifra de 86 por 100 mil, ou seja, oito vezes mais do que o aceitável. Segundo relatório recente da ONG mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal, dentre  as 34 nações mais violentas, o Brasil encontra-se em 13º lugar. No ranking das 50 cidades mais violentas do mundo, 15 são do Brasil. Por que assistimos a esse massacre com tanta passividade?

Não são os adolescentes infratores os responsáveis por cerca de 45% de mortes por motivações fúteis (brigas entre vizinhos, discussão no trânsito e no bar, intrigas passionais). Num país com cerca de 18 milhões de armas de fogo sem nenhum controle, matar parece ter um custo baixíssimo: 92% dos homicidas adultos no Brasil não são presos. A ineficiência generalizada no processo de investigação; perícias deficientes; Justiça seletiva e morosa corroboram a impunidade. Ou seja, para 92% dos assassinos adultos, não há nenhuma pena ou punição.

Não são os adolescentes infratores os responsáveis por cerca de 45% de mortes por motivações fúteis (brigas entre vizinhos, discussão no trânsito e no bar, intrigas passionais).

Retomando o tema dos crimes praticados por adolescentes, não percebemos a mesma indignação e mobilização com a violência generalizada, sistemática e cotidiana cometida contra crianças e adolescentes, no descumprimento de princípios constitucionais básicos. Segundo o Mapa da Violência, 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil em 2010, colocando nosso país na vergonhosa quarta posição entre as 99 nações com as maiores taxas de homicídio de crianças e adolescentes até 19 anos. Dados divulgados pelo Disque 100, serviço da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, dão conta que mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos e agressões naquele ano. Destaca-se, nesse emaranhado de números, outro dado significativo: menos de 3% dos suspeitos de terem cometido violência contra crianças e adolescentes tinham entre 12 e 18 anos incompletos, conforme levantamento feito entre janeiro e agosto de 2011. Conclusão: quem comete violência contra crianças e adolescentes são os adultos.

Segundo dados do IBGE, o Brasil tem cerca de 24 milhões de adolescentes na faixa etária entre 12 e 18 anos. Em 2010, havia 58.764 adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no Brasil, sendo 18.107 com restrição de liberdade (internação, internação provisória e semiliberdade) e 40.657 em meio aberto. Do total de adolescentes em conflito com a lei em 2011, apenas 8,4% cometeram homicídios. A maioria dos delitos é roubo; em segundo lugar, tráfico.

Ora, a partir desses números podemos concluir que somente cerca de 0,3% dos adolescentes na faixa etária entre 12 e 18 anos cumprem medida socioeducativa e apenas 0,09% deles cumprem medidas em meio fechado, sendo que as infrações praticadas pelos adolescentes em sua maioria são crimes contra o patrimônio.

(...) somente cerca de 0,3% dos adolescentes na faixa etária entre 12 e 18 anos cumprem medida socioeducativa e apenas 0,09% deles cumprem medidas em meio fechado, sendo que as infrações praticadas pelos adolescentes em sua maioria são crimes contra o patrimônio.


Como justificar essa ideia absurda e generalizada segundo a qual todo adolescente é potencialmente perigoso? Novamente, dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos mostram que, entre 2002 e 2011, os casos de homicídio  envolvendo adolescentes apresentaram uma redução de 14,9% para 8,4%; os de latrocínio (roubo seguido de morte), de 5,5% para 1,9%; e os de estupro, de 3,3% para 1%. 

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em pesquisa recente, concluiu que quase a metade do total de adolescentes infratores realizou o primeiro ato infracional entre os 15 e os 17 anos e a maioria deixou a escola aos 14 anos, entre a quinta e a sexta séries. E mais: quase 90% não completaram o ensino fundamental. 

Estudos internacionais mostram que a curva da criminalidade na adolescência/juventude tem seu pico entre 21 e 24 anos. A partir daí, reduz-se drasticamente, independentemente da idade penal adotada pelo país.
(...) quase a metade do total de adolescentes infratores realizou o primeiro ato infracional entre os 15 e os 17 anos e a maioria deixou a escola aos 14 anos, entre a quinta e a sexta séries. E mais: quase 90% não completaram o ensino fundamental. 


Um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef) de 2007 (Por que dizer não à redução da maioridade penal) revela que 79% dos 42 países pesquisados (incluindo Suécia, Romênia, Portugal, Noruega, Países Baixos, Japão, Itália, entre outros) adotam a maioridade penal aos 18 anos. Grande parte,  47% desses países, adota a idade de 13 ou 14 anos como início da responsabilidade juvenil. No Brasil, a idade fixada é de 12 anos. Abaixo de 12 anos, apenas sete países.

Esses dados são importantes para refletirmos sobre a baixíssima efetividade de modificações legislativas motivadas por espasmos de indignação porque, comumente, atuam na consequência e não nas causas estruturais geradoras da violência e do crime.

Prender um adolescente de 16 anos e lançá-lo no nosso sistema prisional ("medieval", nos dizeres do atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo) significa entregar para o crime organizado – que se encontra nas prisões – um jovem que, mais cedo ou mais tarde, voltará para a sociedade. Será que depois da experiência da prisão esse jovem voltará melhor do que quando entrou?

Sobre isso, veja o que disse o ministro da Justiça: "Nossos presídios são verdadeiras escolas de criminalidade. Muitas vezes, pessoas entram nos presídios por terem cometido delitos de pequeno potencial ofensivo e, pelas condições carcerárias, acabam ingressando em grandes organizações criminosas. Porque, para sobreviver, é preciso entrar no crime organizado. Reduzir a maioridade penal significa negar a possibilidade de dar um tratamento melhor para um adolescente. Vai favorecer as organizações criminosas e criar piores condições. Criar condições para que um jovem vá para esses locais, independentemente do delito cometido, é favorecer o crescimento dessa criminalidade e dessas organizações. É uma política equivocada e que trará efeitos colaterais gravíssimos."


Prender um adolescente de 16 anos e lançá-lo no nosso sistema prisional ("medieval", nos dizeres do atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo) significa entregar para o crime organizado – que se encontra nas prisões – um jovem que, mais cedo ou mais tarde, voltará para a sociedade. Será que depois da experiência da prisão esse jovem voltará melhor do que quando entrou?


Contrariando o senso comum, deve-se afastar uma informação equivocada que povoa o inconsciente coletivo, segundo a qual o cidadão menor de 18 anos é completamente irresponsável por seus atos e está imune a qualquer intervenção estatal, mesmo que pratique um ato análogo a um crime. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que os adolescentes, a partir dos 12 anos, estão sujeitos a um processo de responsabilização diferenciada (artigos 171 a 190), cujas regras – mesmo tendo finalidade diferente daquelas próprias do direito e do processo penal – são extremamente punitivas. Aliás, o ECA, tão atacado, não é cumprido pelo Estado. Numa pesquisa realizada pelo CNJ, apenas em 5% de quase 15 mil processos de adolescentes infratores havia informações sobre o Plano Individual de Atendimento (PIA), que permitiria que a medida socioeducativa funcionasse como possibilidade de mudança e desenvolvimento do adolescente que cometeu um ato infracional.

Por outro lado, dados do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte dão conta que adolescentes que recebem e cumprem efetivamente medidas em meio aberto, como liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade, têm menos de 2% de reincidência. Ou seja, esse tipo de medida é muito mais efetiva que a internação.

Não seria mais econômico e sensato universalizar as escolas em tempo integral para todas as crianças e adolescentes brasileiros, proporcionando-lhes políticas protetivas, como previstas no ECA?

Para adolescentes que cometem atos infracionais, não seria mais ético investir todas as fichas na melhoria do sistema socioeducativo, apostando na possibilidade de "recuperação"?  Não seria mais econômico e sensato universalizar as escolas em tempo integral para todas as crianças e adolescentes brasileiros, proporcionando-lhes políticas protetivas, como previstas no ECA? Por que não lutamos pelo agravamento da pena de "corrupção de menores", desmotivando o (ab)uso de adolescentes por adultos?

Enquanto apontamos os dedos para adolescentes infratores, milícias e esquadrões da morte formados, inclusive, por agentes públicos, continuam impunes.

A redução da maioridade penal pode ser defensável sob o ponto de vista da racionalidade instrumental pós-moderna, do minimalismo midiático, das emoções pessoais e mesmo do sentimento coletivo de vingança e punição. Porém, não se sustenta sob o ponto de vista de uma ética da alteridade, da generosidade e da responsabilidade de todos nós, adultos, que devemos reconhecer que o segmento mais vulnerável da nossa população, os adolescentes – tratados como "futuro do país" –, não tem seus direitos garantidos no presente.

Enquanto apontamos os dedos para adolescentes infratores, milícias e esquadrões da morte formados, inclusive, por agentes públicos, continuam impunes.



A querela acerca da redução da maioridade penal em boa medida é fruto do sensacionalismo e do desconhecimento em relação à ampliação descomunal do Estado penal. Lastreado na exploração da emoção e na desinformação da maioria dos brasileiros sobre a baixa eficiência das políticas públicas protetivas – que deveriam preceder qualquer medida punitiva –, esse debate sustenta, lamentavelmente, o discurso oportunista e eleitoreiro de políticos que descumprem impunimente aquilo que tanto atacam, o ECA.

A querela acerca da redução da maioridade penal em boa medida é fruto do sensacionalismo e do desconhecimento em relação à ampliação descomunal do Estado penal.

A relação entre a violência e a imputabilidade penal é um sofisma. O debate sobre o tempo da pena ou da idade do infrator é secundário. Serve para lançar uma nuvem de fumaça a encobrir a questão fulcral: quais são condições objetivas que favorecem a criminalidade em nosso país?

Nossas crianças e adolescentes demandam por mais Estado constitucional e menos Estado penal.



domingo, 22 de março de 2015

Ditadura: passado e presente

Falar de ditadura parece estar na moda. Mas, ao contrário do que comumente é conhecido, o regime ditatorial foi muito mais amplo do que se pode imaginar. Ou seja, além de militantes de movimentos, partidos e sindicatos, a máquina política da repressão conseguiu atingir um número muito maior de ativistas que ainda continuam anônimos. Pelo Brasil afora, milhares de pessoas foram vítimas de todo o tipo de perseguição e sevícias.


Para além dos conhecidos atores que promoveram a repressão, notadamente as Forças Armadas e as polícias estaduais (militares e civis), pude perceber, quando coordenador da Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura, que há fortes suspeitas da participação de outros personagens na eclosão e manutenção do regime ditatorial. Estou me referindo à conivência, omissão e, inclusive, à colaboração de civis, agentes privados e estatais (de diversas áreas e agências públicas), com o regime ditatorial brasileiro.


Estou me referindo à conivência, omissão e, inclusive, à colaboração de civis, agentes privados e estatais (de diversas áreas e agências públicas), com o regime ditatorial brasileiro.

O nível de perseguição e violência perpetrado contra cidadãos que não concordavam com a ditadura (não só dos generais) — além de ter atingido um número muito maior de vítimas do que aquelas até agora conhecidas —, parece apontar para uma estrutura na qual os agentes da repressão contavam com ampla rede de colaboração de outros atores sociais, incluindo, por exemplo, lideranças políticas nos níveis locais que, respaldadas pelo regime ditatorial, se impunham e se perpetuavam no poder pela via da conivência com o regime. Conhecer essa imbricada rede (ampliada) de agentes públicos civis que foram partícipes do regime ditatorial também passa a ser elemento importante para o desvelamento das armadilhas do passado de tão triste memória.


Triste e revoltante é a constatação de que a prática da tortura se institucionalizou desde os tempos ditatoriais: não se trata de prática que acontecia só no passado; mas de situação que ainda existe e persiste no presente. Em muitas delegacias, batalhões, centros de internação de adolescentes e, principalmente, nas prisões a prática da tortura ainda sobrevive. Mudaram as vítimas: antes, militantes políticos que lutavam pela democracia; hoje, pobres, negros, moradores de rua e prostitutas; um sem-número de jovens das periferias; homens e mulheres que, sem acesso à Justiça e limitados em seus direitos de cidadania por terríveis mecanismos de exclusão, ainda são vítimas de todo o tipo de arbitrariedades cometidas por agentes do Estado.

O regime político também mudou. Mas, como a política de segurança pública (e o Judiciário seletivo) praticamente continuam operando quase nos mesmos moldes daqueles tempos poucos memoráveis, as várias formas de violência estatal denunciam a fragilidade da nossa democracia.
Em muitas delegacias, batalhões, centros de internação de adolescentes e, principalmente, nas prisões a prática da tortura ainda sobrevive. Mudaram as vítimas: antes, militantes políticos que lutavam pela democracia; hoje, pobres, negros, moradores de rua e prostitutas; um sem-número de jovens das periferias; homens e mulheres que, sem acesso à Justiça e limitados em seus direitos de cidadania por terríveis mecanismos de exclusão...

Conhecer o passado é fundamental para compreendermos o presente e não cometermos os mesmos erros pretéritos, no futuro. Infelizmente, os ideais democráticos daqueles que tombaram e dos que foram torturados anos atrás ainda não se completaram. Enquanto o Estado brasileiro não dizimar, de vez, qualquer tipo de afronta à dignidade humana praticada por agente público não podemos dizer que somos um país democrático.


As Comissões da Verdade, debruçando-se no desvelamento dos períodos de exceção, têm apontado diretrizes e sugestões de políticas públicas objetivas, a indicar reformas estruturais em nosso sistema de justiça criminal. Este sistema, em certa medida, ainda reproduz e convive com práticas de arbítrio fundadas no passado ditatorial e inconcebíveis no âmbito do Estado Democrático de Direito.
Enquanto o Estado brasileiro não dizimar, de vez, qualquer tipo de afronta à dignidade humana praticada por agente público não podemos dizer que somos um país democrático.

Justiça eficiente e menos seletiva, agências independentes e autônomas de controle da atividade policial e acesso universal à justiça. Mecanismos relativamente simples que os governos civis (nos âmbitos federal e estadual), passadas três décadas da assunção da ordem democrática, ainda não tiveram a ousadia de criar e implantar nas estruturas estatais.

Tão importante quanto a luta pela manutenção e aprofundamento da democracia, é a batalha cotidiana pela superação dos resquícios do regime ditatorial que ainda persistem em nosso país. O genocídio da juventude negra, por exemplo, denuncia a conivência do Estado e da sociedade com uma democracia na qual a igualdade de direitos ainda não superou a formalidade da lei. Até quando o Estado brasileiro tolerará a tortura?


sexta-feira, 20 de março de 2015

Duas notas no início de um ano infernal

O ano de 2015 só está começando. E já sabemos que será um ano infernal. Começamos refletindo sobre a crise hídrica. Em São Paulo, o governo tucano continua afirmando que o desabastecimento não existe. Todos sabem que daqui há mais ou menos quatro meses, se continuar como está, o Sistema Cantareira vai secar. 

Em Minas, com medo dos resultados das urnas, os tucanos omitiram a gravidade da situação, principalmente da RMBH. No Rio, o governo peemedebista omite o fato de o rio Paraíba do Sul, que abastece quase todo o estado, estar próximo ao colapso. No cenário nacional, o governo petista, mesmo sabendo do risco de um apagão, continua dizendo que não há problemas. Se tivéssemos governos responsáveis, seria a hora de nossas lideranças fazerem um pronunciamento público à nação. É preciso admitir o quadro periclitante de nossas hidroelétricas e represas e clamar à população para que cumpra o seu dever de economizar. 


O fato é que esse modelo de desenvolvimento que privilegia o bem-estar individual em detrimento dos recursos ambientais mostra a perversidade desse processo violentador.


Dois fatores foram cruciais para esse quase caos: os eventos climáticos, ocasionados, em boa medida, pelo modelo de desenvolvimento que violenta a natureza, e o fato de que, nos últimos 20 anos, os consumidores vorazes da classe média brasileira saltaram de 30% para cerca de 70% da população. Isso representou uma extraordinária demanda de consumo num curtíssimo período. Agora só falta algum preconceituoso culpar os pobres por terem ascendido à classe média. O fato é que esse modelo de desenvolvimento que privilegia o bem-estar individual em detrimento dos recursos ambientais mostra a perversidade desse processo violentador.

Agora olhemos para Brasília: a Câmara dos Deputados elegeu como presidente Eduardo Cunha. (Nem vou comentar a situação do Senado, que tem Renan Calheiros como presidente e que está se transformado num locus dos decadentes da política, salvo poucas exceções). O currículo de Cunha, os interesses dele e os grupos que ele defende sintetizam a qualidade de muitos daqueles que nos representam e lideram nossas instituições democráticas. Enquanto mantivermos esse modelo político-eleitoral que privilegia o capital-eleitor em detrimento do cidadão, vamos continuar reféns de uma pseudodemocracia cujos eleitos não representam de fato o povo.


Um Parlamento estruturado no chamado presidencialismo de coalizão que tem se transformado num balcão de negócios espúrios. Um Executivo refém dos tentáculos do capital, quase ajoelhado diante dos ditames da deusa-economia e de costas para a ecologia e a política e um Judiciário elitizado, surdo aos clamores populares, patrimonialista, insulado, seletivo e discricionário.


Vejamos a decadência das nossas instituições: um Parlamento estruturado no chamado presidencialismo de coalizão que tem se transformado num balcão de negócios espúrios. Um Executivo refém dos tentáculos do capital, quase ajoelhado diante dos ditames da deusa-economia e de costas para a ecologia e a política e um Judiciário elitizado, surdo aos clamores populares, patrimonialista, insulado, seletivo e discricionário. Socorro!

Mas, atenção: o fato de o Congresso Nacional, por exemplo, estar povoado de parlamentares de duvidosa reputação (acho que devo ser mais polido na definição!) não significa que devemos desdenhar as instituições democráticas; clamar pelo fechamento do Legislativo Federal; torcer para que as instituições se fragilizem ainda mais (afinal, instituições fracas = democracia fraca). Significa, entre outras questões, que devemos analisar porque o eleitor tem votado em políticos de "qualidade" tão duvidosa... Será que eleições regulares, sem educação política do cidadão/eleitor, são suficientes para a consolidação democrática?

Podemos fingir, acreditando nesse tipo de democracia. Mas não há futuro promissor enquanto o Brasil não enfrentar o personalismo, o elitismo, o autoritarismo, o burocratismo, o patrimonialismo,... e continuar adiando a tarefa de reformar nossas instituições pouco republicanas.



... Não há futuro promissor para a nossa democracia enquanto o Brasil não enfrentar o personalismo, o elitismo, o autoritarismo, o burocratismo, o patrimonialismo...

(Partes deste artigo também foram publicadas na revista Vox Objetiva e no jornal Santuário de Aparecida).

quarta-feira, 11 de março de 2015

Pois eu digo: somos corruptos...


Sejamos honestos: vamos acabar com a corrupção no Brasil? Que tal começarmos agora esta grande empreitada!

Há um clima de revolta pairando no ar. Todos a apontar o dedo: político é tudo igual; político é corrupto.

É verdade: a política institucional, aquela que ocorre nos partidos e nas instituições do Estado, que depende cada vez mais do dinheiro privado para a sua subsistência (e subserviência, diga-se de passagem), parece estar chafurdada na corrupção.

Mas lembremos: onde há corruptos, há corruptores. Por isso, é alvissareiro observar que, pela primeira vez na história deste país, empresários e políticos poderosos têm permanecido por mais de 24 horas na prisão, apesar de um Judiciário tão seletivo, patrimonialista e elitista como o nosso.

Aliás, a melhor pena para um corrupto nem seria a prisão. Para aqueles que roubam, a devolução em dobro daquilo que foi surrupiado seria uma reprimenda que beneficiaria muito mais a sociedade. Isso seria possível, se trocássemos a justiça vingativa pela justiça efetiva.

Porém, a quem interessa a criminalização da política? As democracias consolidadas apontam a política como único caminho seguro para a efetividade de um estado de direito.

Por isso, vamos deixar a hipocrisia de lado e vamos falar da corrupção como ela é, para além da corrupção que ocorre na política institucional.


O cinismo, bem característico da nossa cultura, nos autoriza a apontar o dedo para os outros. Mas, estaríamos dispostos a nos submeter ao teste da corrupção?


A palavra corrupção vem do latim corruptus, que significa “quebrado em pedaços”. Corrupção é a ação ou efeito de corromper; de subornar (dar dinheiro) uma ou várias pessoas em benefício próprio ou em nome de outra pessoa ou de um grupo; é a utilização de recursos que, para ter acesso a informações confidenciais e privilegiadas, pode ser utilizado em benefício próprio. É alterar as propriedades originais de alguma coisa: plagiar um livro, por exemplo. É a ação de decompor ou deteriorar; putrefação: corrupção das frutas. Corrupção é também o desvirtuamento de hábitos; devassidão de costumes e pode ainda ser definida como utilização do poder ou autoridade para obter vantagens e fazer uso do dinheiro público para o seu próprio interesse, de um integrante da família ou um amigo.

O cinismo, bem característico da nossa cultura, nos autoriza a apontar o dedo para os outros. Mas, estaríamos dispostos a nos submeter ao teste da corrupção?

Então, vamos lá:

·        Você que é comerciante e embute um lucro enorme nas suas mercadorias: você é um corrupto;

·        Você que é banqueiro e cobra juros escorchantes nos empréstimos: você é um corrupto;

·        Você que gosta de “furar fila” e andar pelo acostamento: você é um corrupto;

·        Você que usa de influência para favorecer um amigo ou parente seja no serviço público ou privado: você é um corrupto;

·        Você que é dono de veículo de comunicação - que opera como concessão pública - e só divulga informação que interessa ao seu grupelho: você é um corrupto;

·        Você que é jornalista e informa parcialmente, distorce os fatos, manipula informação: você é um corrupto;

·        Você que faz “gato” para furtar água, luz, telefone: você é um corrupto;

·        Você que tem poder (mesmo “pequenininho”) e usa do poder para levar vantagem, oprimir, manipular: você é um corrupto;

·        Você que altera a balança, a bomba de combustível e acrescenta ou retira algo que não consta dos ingredientes descritos na embalagem de uma mercadoria: você é um corrupto;

·        Você que não paga impostos corretamente; que não emite nota fiscal, que maquia dados contábeis de sua empresa: você é um corrupto;

·        Você que não exige nota fiscal para livrar-se do fisco: você é um corrupto;

·        Você que engana seu cliente vendendo um remédio sem nenhuma efetividade: você é um corrupto;

·        Você que vende qualquer mercadoria prometendo algo que o produto não oferece de fato: você é um corrupto;

·        Você que é médico e faz da sua profissão uma extensão da indústria farmacêutica: você é um corrupto;

·        Você que é advogado e usa de sua profissão para enganar e ludibriar o outro ou a Justiça: você é um corrupto;

·        Você que é líder religioso e não presta contas de parte do dinheiro coletado para a igreja: você é um corrupto;

·        Você que é professor e enrola seus alunos: você é um corrupto;

-  Você que é aluno e "cola" ou põe seu nome no trabalho de grupo sem efetivamente participar: você é um corrupto;

·        Você que é funcionário público e usa seu cargo para obter qualquer tipo de vantagem ou privilégio: você é um corrupto;

·        Você que é magistrado e está a serviço de interesses escusos e não da justiça: você é um corrupto;

·        Você que é um profissional liberal e não cumpre fielmente o Código de Ética da sua profissão: você é um corrupto;

·        Você que é pai ou mãe e que o tempo todo ludibria seus filhos: você é um corrupto;

·        Você que não remunera adequadamente seus funcionários: você é um corrupto.

Esta é uma lista sem fim...  E caso você não tenha sido “contemplado” nela e esteja feliz porque, como todos os corruptos, acha que ninguém sabe da sua corrupção cotidiana, não se vanglorie. A linha abaixo está reservada para você engrossar a lista.

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No fundo, por ações, conivências ou omissões, fazemos parte dessa cultura de levar vantagem em tudo, mesmo com nossa consciência a nos dizer: “Eu só cometo pequenos deslizes”.

Mas sejamos honestos: vamos acabar com a corrupção no Brasil? Que tal começarmos agora esta grande empreitada!

segunda-feira, 2 de março de 2015

Álcool: a droga da morte

Ainda repercute a notícia de um jovem de 23 anos que morreu após ingestão excessiva de álcool em uma festa universitária, em Bauru, no Centro-oeste paulista. Humberto Moura Fonseca participava de uma competição para ver quem conseguia beber mais. Outros três jovens — incluindo duas mulheres — estão em estado grave.

Qual a droga que mais mata no Brasil? O crack, a maconha, a heroína ou o êxtase? Não. O que mais mata no Brasil é o álcool, consumido puro e/ou associado com outras drogas e fatores de risco.  

Segundo o Ministério da Saúde, as maiores causas de morte são problemas cardiovasculares e o câncer, duas doenças relacionadas ao álcool. Mas a perda de vidas não está associada somente às doenças relacionadas ao vício do álcool. Metade das mortes no trânsito envolve motoristas embriagados. 

Mesmo em pequenas doses, o álcool prejudica a percepção de velocidade e distância; pode causar dupla visão e incapacidade de coordenação. Resultado: milhares de vidas ceifadas no trânsito.

O consumo de álcool no Brasil é quase 50% superior à média mundial e o comportamento de risco no país já supera o padrão da Rússia (considerado um país onde se consome álcool exageradamente). Levantamento feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que os brasileiros com mais de 15 anos bebem o equivalente a 10 litros de álcool puro por ano – a média no mundo é de 6,1 litros. Entre os homens que bebem, a taxa é de 24,4 litros de álcool por ano e entre as mulheres, de 10 litros.

O álcool no Brasil é responsável por 7,2% das mortes – índice quase duas vezes superior à média mundial. Cerca de 30% da população que admite beber frequentemente afirma que se embriaga pelo menos uma vez por semana. Nos EUA, a taxa é de 13%, contra 12%, na Itália. Mesmo na Rússia, o índice daqueles que exageram na bebida é inferior ao do Brasil: 21%. A cerveja é responsável por 54% do consumo de álcool no Brasil. Mas os destilados representam 40%, uma taxa considerada alta. O vinho corresponde a cerca de 5%. Se somarmos as mortes no trânsito derivadas do consumo de álcool àquelas por motivações fúteis, pertinentes a esse vício, e às relacionadas a doenças associadas ao alcoolismo (cardiovasculares e cânceres), teremos o álcool, além de a principal causa de óbitos, também como o maior motivador da violência no país.

              "Com uma propaganda constante e subliminar (que inclusive associa álcool, sexo e prazer), a indústria do álcool captura com facilidade milhões de jovens, que serão reféns desse vício por longos anos (provocando enormes custos de tratamento no sistema de saúde) ou constarão, em breve, das estatísticas das mortes em nosso país."


Pesquisa realizada pelo sociólogo Guaracy Mingardi, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), em 14 delegacias dos bairros mais violentos da Zona Sul paulistana, constatou que o álcool é o agente detonador de, pelo menos, 41% dos homicídios. Outra, feita pelo Instituto Médico Legal paulista em 2005, revelou que as 2.007 vítimas de homicídio no estado de São Paulo, 863 tinham consumido álcool, sendo que 785 delas tinham mais de 0,6 gramas de álcool por litro de sangue. Os dados estão no trabalho “Uso de álcool por vítimas de homicídio no município de São Paulo”, do pesquisador Gabriel Andreuccetti, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), premiado pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) em 2007.

Outra pesquisa premiada pela Senad, Políticas municipais relacionadas ao álcool: análise da lei de fechamento de bares e outras estratégias comunitárias em Diadema (SP), do médico Sérgio Duailibi, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra a forte correlação entre álcool e violência nas mortes por motivos fúteis.

Mas por que no Brasil as políticas de controle e redução das mortes provocadas pelo álcool são quase inexistentes? Porque a indústria do álcool (como a das armas) é poderosíssima: tem bancada nos parlamentos, controla altíssimas verbas publicitárias na mídia e, recentemente, é responsável pela promoção de grandes eventos, inscritos, entre outros, naquilo que se denominou chamar de “paixão popular”.

Ademais, com uma propaganda constante e subliminar (que inclusive associa álcool, sexo e prazer), a indústria do álcool captura com facilidade milhões de jovens, que serão reféns desse vício por longos anos (provocando enormes custos de tratamento no sistema de saúde) ou constarão, em breve, das estatísticas das mortes em nosso país.