quinta-feira, 9 de junho de 2016

A mídia, o golpe e a pseudoguerra do bem versus o mal




À medida que o poderio econômico foi dominando a mídia, muitos “profissionais da pena” foram se subjugando aos interesses patronais e outros se transformando em animadores de auditório. Parte do jornalismo, ator político relevante na formação da “opinião pública”, tem se contentado com o apequenado papel de ventríloquo.

Presenciamos no Brasil uma incestuosa relação no universo da comunicação de massa: de uma maneira geral, o jornalismo domado às conveniências do grande capital sucumbe aos ditames dos donos dos oligopólios empresariais e midiáticos que determinam o que deve ser pautado, como, quando, de qual forma, com qual recorte e viés, assim como o que deve ser publicado (melhor dizendo, publicizado — dado que a produção da notícia se transformou ora em mercadoria, ora em produto de entretenimento). Assim, o jornalismo dos grandes veículos de comunicação decompõe-se em espetáculo, muitas vezes grotesco, a ser vendido de forma sensacionalista, eivado de interesses de classe, para o deleite do telespectador-consumidor desavisado.

Numa afronta colossal ao direito humano à comunicação, as grandes redes de mídia e as poderosas agências noticiosas escolhem, selecionam, manipulam e determinam o que deve ser divulgado e sob qual ótica os fatos são apresentados à opinião pública.

Há muito se questiona a isenção e a imparcialidade dos meios de comunicação. Por um lado, em virtude das relações imbricadas e promíscuas que envolvem os donos dos veículos (muitos dos quais, editores de suas empresas de comunicação; outros tantos, políticos herdeiros da velha estrutura colonial e familiar) com setores conservadores, elitistas e golpistas; por outro, pela fragilidade de parte de seus quadros profissionais, submissos (e impotentes) frente às determinações patronais. Quem perde com essa situação é a democracia que deixa de ter na imprensa o contraponto às mazelas sociais, econômicas e políticas.

Acompanhamos, com perplexidade e surpresa, a cobertura que a mídia tem dado às denúncias de corrupção que assolam frequentemente nossa República. A imprensa tem desprezado o aprofundamento das informações e demonstrado discricionariedade e seletividade na cobertura. A guerra do bem  versus  o mal reproduz o velho estilo maniqueísta (uma forma de pensar simplista em que o mundo é visto como que dividido em dois, reduzindo os fenômenos humanos e sociais a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo; sendo que a simplificação nasce da intolerância ou desconhecimento em relação a verdade do outro e/ou da pressa de entender e refletir sobre a complexidade de tais fenômenos.).  Quase não se fala, por exemplo, sobre os corruptores, os donos do capital e os interesses econômicos por detrás dos políticos e empresários corruptos. E que a corrupção não é obra brasileira. Trata-se de uma grande engenharia multinacional, construída para manter e fazer funcionar o capitalismo rentista.

Somos bombardeados com um vendaval de informações pontuais, muitas vezes descontextualizadas, passando a (falsa) impressão, por exemplo, de que todos são, essencialmente, corruptos e desonestos quando, na verdade, o discurso do combate à corrupção funciona como lenitivo de salvaguarda da elite empresarial-midiática-política, historicamente envolvida até o pescoço com os malfeitos. Os brasileiros e brasileiras não são corruptos por essência, como a mídia quer que acreditemos. Mas nossas elites o são. Esse é o ponto. Essa mentira vendida como verdade (de que todos são, indistintamente, corruptos) tem provocando um misto de histeria coletiva de caça às bruxas, expressa na raiva, ódio e desilusão em relação ao sistema político e provocado um imobilismo cívico – a ideia de que este país não tem conserto. Portanto, entreguemo-lo para os ratos.

Outro fenômeno que ressurgiu a partir das manifestações de 2013 e se recrudesceu nas últimas eleições, em 2014, foi um misto difuso de ódio e vingança, fazendo da disputa eleitoral uma verdadeira guerra, quando o processo democrático da escolha dos representantes deveria ser tão e somente um embate civilizado e respeitoso de ideias, opiniões e pontos de vista sobre os rumos do país. A quem interessa um país no qual os cidadãos têm nojo da política?

Frente a tanta (des)informação parece que estamos perdidos; que ninguém é honesto; que não vale a pena lutar pela ética, a verdade, a justiça. A mensagem subliminar seria, então, que vale a pena ser desonesto e chafurdar-se nas pequenas corrupções do dia a dia? É essa a mensagem sub-reptícia que nos é passada por essa mídia venal e fascista?

O pior dos mundos é quando os cidadãos não reconhecem na ética, na verdade, na mobilização social e na luta política os caminhos para as mudanças.

O filósofo e cientista político esloveno Slavoj Žižek  nos ajuda a pensar algo muito importante: a unificação de todos os nossos medos (e/ou discursos do medo) numa (falsa) verdade é o grande objetivo que sempre moveu os ideais dos mais conservadores. Essa estratégia justificou o nazismo (os nazistas tinham horror dos judeus, dos homossexuais...) ou o golpe civil-militar de 1964 (medo do comunismo), por exemplo. E, agora, justifica a assunção de uma quadrilha ao poder. Depois de transformar uma mentira numa verdade (que somente o PT e seus quadros são corruptos), a mídia brasileira liderou a gangue que estuprou nossa democracia. Não é mera coincidência o fato de o sistema de justiça desdenhar os estupros reais, como o ocorrido no Rio de Janeiro, daqueles simbólicos, não menos violentos, como o ocorrido com nossa democracia. A justiça, enquanto sistema, não existe para produzir justiça; senão, para corroborar os intentos e perversões dos poderosos.

O fato, é que a soma dos muitos medos (os verdadeiros ou aqueles construídos no imaginário social) é o ambiente propício para se criar um clima de pânico, instalar a desconfiança generalizada, propagandear uma insatisfação irracional. A partir daí, pode-se construir os pseudo-heróis "salvadores da Pátria"; justifica-se o injustificável; elegem-se os bodes expiatórios lançando-os à fogueira, na condenação midiática para o gozo sempiterno de uma massa amorfa, porque sempre apartada da política.

Mesmo nos regimes ditos democráticos, a construção orquestrada do medo pelos segmentos cujos privilégios são colocados à prova pavimenta atalhos fáceis para o golpismo. Mas, voltemos a Žižek:  a partir da unificação dos medos é fácil acatar como verdade inequívoca o discurso do ódio, da violência, da eliminação a qualquer custo daquele que encarna os males e seus seguidores.

Outro problema político vergonhoso, camuflado nesse cenário, é a intolerância, o racismo, o sectarismo religioso, o preconceito – principalmente de matrizes étnica e socioeconômica -, o fascismo disfarçado de nacionalismo. Esses "demônios" saíram do armário (porque lá sempre estiveram) e seus adeptos (que comportam como massa acéfala) querem se impor, afrontando a democracia.

Infelizmente, alguns privilegiados de ontem e de hoje não aceitaram uma sociedade que caminhava, a passos lentos, na construção da igualdade de fato, para além da igualdade de direito. Querem se manter como diferentes, ostentando os velhos privilégios da Casa Grande. Por isso, preferem morar em Miami. Não conhecem a verdadeira história deste país, porque a conquista de direitos, mesmo lenta e gradual, é irreversível em qualquer sociedade minimamente democrática e plural.

A igualdade de direitos faz parte do processo de consolidação da cidadania e é fundamento da democracia. Não há democracia numa sociedade estamental, como era o Brasil até bem pouco tempo. E não há democracia quando a mídia se transforma em partido político a fomentar e dar suporte ao golpe e, agora, transformando-se em porta-voz do governo golpista.